Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Arnaldo Bloch
Digamos que um boi desgarrado dum
rebanho, ou fugido de um matadouro, se encontrasse num terreno baldio, ou num
campinho de vargem abandonado, pastando sobre uns restos de graminha e,
inadvertidamente, cruzasse caminho com um repórter especial com poderes
especiais, capaz de extrair, de seus mugidos, a opinião do animal não apenas
sobre a crise da carne, mas sobre a situação toda do país.
Por mais opinoso que fosse esse boi
rebelde, anônimo, clandestino, a carne, do ponto de vista do consumo, não
estaria entre suas prioridades: boi não come boi, o que faz dele, por sinal, um
ser em sintonia com a política vegana, tão em voga, mas não por ideologia, e
sim por sua involuntária natureza.
Fosse ele de fato fugitivo de um
matadouro, aí sim, talvez, tivesse algo a dizer sobre como se tratam os seus irmãos
e suas irmãs (vacas são abatidas em menor número, mas também levam a lâmina, o
choque no ânus, o tiro na cabeça ou o que lá seja, dependendo da tecnologia
empregada). O mesmo sobre os filhos, novilhos, vitelas: não há trégua nem para
os bebês, mais tenros ao palato do comensal, escolhidos a dedo nas fazendas.
Falaria, ou mugiria, em nome também
dos cabritos, das ovelhas, dos bodes vertidos em buchadas, preferidas até por
presidentes, e dos frangos confinados dia e noite na luz. Fosse nosso boi vadio
um boi versado, talvez tecesse considerações sobre o aspecto econômico dentro
da dinâmica da cadeia alimentar humana, levantando fatores socioeconômicos,
culturais e evolutivos.
Diria o boi que se, talvez, no
futuro, a hoje chamada escravidão animal venha a ser abolida, isso não se fará
de uma hora para outra, ou a toque de caixa, como, por exemplo, se tenta fazer
agora com assuntos tão importantes quanto a lista fechada ou a terceirização de
atividades fins.
Será preciso uma transformação de
mentalidades e um ambiente econômico em que um país não corra o risco ainda
maior de quebrar se o consumo de suas entranhas, aqui e lá fora, for impactado.
Ainda que por uma inspeção da Polícia Federal que em alguns aspectos, se
chamarmos de bovina como fazia Nelson Rodrigues, talvez seja ofensiva aos
próprios bois, que não têm nada a ver com o modo com que se manipula seu corpo
para a comercialização, ou com as vaidades do Poder Judiciário, antes ou após o
abate.
Mas o leitor sabe, o cronista sabe
(embora, por natureza, tome liberdades metafóricas e hiperbólicas como
instaurar uma entrevista de um repórter com um boi), e talvez o próprio boi
saiba que bois não falam e que não há um dicionário para mugidos que dê conta
de muitas traduções além dos sons que expressam dor, contentamento,
contrariedade ou afeto, no trato com os seus pastores ou seus matadores.
O que leva, enfim, o cronista a
chegar ao ponto que almeja: se é difícil, na vida real como a conhecemos,
perguntar ao gado sua opinião sobre o abate, é mandatório consultar o eleitor
(para não dizer “povo” e soar casuístico) sobre temas que afetam sua vida, e o
que pensa sobre a maneira como se trata o seu destino no âmbito público, seja
para efeitos de arrecadação, seja no que toca às legislações que determinam seu
futuro e, consequentemente, o futuro do país. Que é, em última análise,
constituído por todos os setores da boiada, dos mais magros aos mais gordos,
dos desgraçados aos afortunados.
Nesse sentido, a pressa com que
alguns magistrados e políticos querem aprovar a lista fechada sem qualquer tipo
de consulta à sociedade (caso muito bem expresso no embate entre um altíssimo
juiz e um colega envolvido na questão, que pede para os apressados baixarem a
bola) é exemplar: fica a forte impressão de que o interesse em tamanha
celeridade tem muito menos a ver com a qualidade dos candidatos e o
aperfeiçoamento do sistema e muito mais com a chance de livrar sua turma da
fila do abate. Ou, conforme se quiser chamar, a fila do jato d’água e seus
consequentes encanamentos.
Nos outros grandes temas da nação
parece que tudo caminha na mesma vertente. A discordância entre Câmara e Senado
no caso da terceirização de atividades-fim, e da reforma trabalhista como um
todo (deixemos de lado a Previdência, cuja gestação é mais, digamos, pluralista
e multissetorial) parece estar ora relacionada com os interesses das casas
legislativas e do Executivo diante do eleitorado e das empresas (todos
interesses legítimos).
Deixa, contudo, mais para a margem do
campo social, o que diz quem mais será afetado, negativa ou positivamente: o
trabalhador. Este sabe falar e, apesar das metáforas já tão repisadas (muito
antes da famosa cena na abertura de “Tempos modernos” já se comparava porta de
fábrica com porteira de fazenda), não é boi, é gente. Com todo respeito aos
nossos irmãos no espectro multibiológico, ao qual São Francisco de Assis é tão
sensível. Ficção?
Arnaldo Bloch, Jornalista, é
colunista de O Globo, onde o artigo foi originalmente publicado em 25 de março
de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário