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Por Carlos I. S. Azambuja
“A religião é o suspiro da
criatura esmagada pela desgraça, a alma de um mundo sem coração, assim como o
espírito de uma época sem espírito. É o ópio do povo” (Karl Marx)
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O marxismo não ocupa mais um grande espaço na cultura do
Ocidente, nem mesmo na França ou na Itália, onde uma parte importante da
intelligentsia se filia abertamente ao stalinismo. Em vão se procuraria um
economista digno desse nome que possa se qualificar de marxista no sentido
estrito do termo.
Em O Capital, uns percebem o pressentimento das verdades
keynesianas, outros, uma analise existencial da propriedade privada ou do
regime capitalista. Nenhum deles prefere as categorias de Marx às da ciência
burguesa, quando se trata de explicar o mundo atual. Da mesma forma, em vão se
procuraria um historiador importante cuja obra reivindique para si o
materialismo dialético ou dele decorra.
Nenhum historiador, nenhum economista, é verdade, pensaria
exatamente como pensa, caso Marx não tivesse existido. O economista ganhou
consciência da exploração ou ainda consciência do custo humano da economia
capitalista, e pode-se merecidamente agradecer a Marx por isso.
O historiador não se atreverá mais a fechar os olhos às
realidades humildes que dirigem a vida de milhares de pessoas. Não se tem mais
a ilusão de compreender uma sociedade ignorando-se a organização do trabalho,
as técnicas de produção e as relações entre as classes. Mas daí não resulta que
possamos entender as modalidades da arte da filosofia com base em tais
ferramentas.
Em sua forma original, o marxismo permanece atual no conflito
ideológico do nosso tempo. Condenação da propriedade privada e do imperialismo
capitalista, convicção de que a economia de mercado e o reino da burguesia
tendem, por conta própria, ao fim, rumo à planificação socialista e ao poder do
proletariado, esses fragmentos soltos da doutrina são aceitos, não só pelos stalinistas
e seus simpatizantes, mas pela imensa maioria dos que se dizem progressistas. A
inteligência, dita de vanguarda – e que jamais leu O Capital – adota
quase espontaneamente esses preconceitos.
Ultrapassado no plano científico, e mais atual que nunca nio
plano das ideologias, o marxismo, tal como é hoje em dia interpretado, impõe-se
a qualquer interpretação da História. As pessoas não vivem catástrofes
comparáveis às que sacudiram a Europa no Século XX sem se interrogar sobre o
sentido desses acontecimentos trágicos ou grandiosos. O próprio Marx procurou
as leis pelas quais funciona, se mantém e se transforma o regime capitalista.
Nem as guerras, nem as revoluções do Século XX têm a ver com a teoria que Marx
menos demonstrou do que sugeriu. Nada impede que se conservem palavras –
capitalismo, imperialismo, socialismo – para designar realidades que se
tornaram outras. E as palavras permitem não explicar cientificamente o curso da
História, mas dar-lhe um significado previamente fixado. Dessa maneira, as
catástrofes se transfiguram em meios de salvação.
Em busca de esperança em uma época desesperada, os filósofos se
contentam com um otimismo catastrófico.
Na época da social-democracia alemã e da II Internacional, a
teoria da autodestruição do capitalismo era vista como essencial para o dogma.
Eduard Bernstein foi condenado como revisionista pelos Congressos/Concílios da
Internacional por ter posto em questão um dos argumentos-chave dessa teoria: a
concentração do capital. Mas o dogmatismo não ia além da teoria e da estratégia
que dela decorria: a revolução final da dialética do capitalismo. Na ação
cotidiana, as divergências de opinião no interior de cada Partido, ou entre os
Partidos nacionais, permaneciam legítimas: a tática não se incluía na história
sagrada. Não é mais o que acontece sob o stalinismo.
Par reconciliar os acontecimentos de 1917 com a doutrina, foi
preciso abandonar a idéia de que a História percorre as mesmas etapas em todos
os países e decretar que o Partido Bolchevique russo é o representante
qualificado do proletariado. A tomada do Poder pelo Partido e a encarnação de
um ato prometeico (*) através do qual os oprimidos rompem as suas cadeias.
Toda vez que o Partido conquista um Estado, a Revolução
progride, mesmo que os proletários em carne e osso não se reconheçam no seu
Partido e na Revolução. Na III Internacional é a identificação do proletariado
mundial com o Partido Bolchevique que constitui o objeto primário da fé. O
comunista, stalinista ou malenkovista é, antes de tudo, alguém que não faz
distinção entre a causa da União Soviética e a causa da Revolução.
A história do Partido é a história sagrada, que conduzirá à
redenção da humanidade. Como o Partido poderia participar das fraquezas
inerentes às obras profanas? Todo indivíduo, mesmo bolchevique, pode se
enganar. O Partido, de certa maneira, não pode e nem deve se enganar, uma vez
que diz e cumpre a verdade da História. Ora, a ação do Partido se adapta a
circunstâncias imprevisíveis. Militantes, igualmente dedicados, se opõem quanto
à decisão a tomar ou quanto à decisão que seria preciso tomar.
Tais controvérsias dentro do Partido são legítimas, à condição
de não pôr em causa a delegação do proletariado ao Partido. Mas, quando este
último está dividido em trono de um assunto de grande importância, como a
coletivização da agricultura, uma das tendências representa o Partido, isto é,
o proletariado e a verdade da História, e a outra – a oposição vencida – trai a
causa sagrada. Lenin nunca teve dúvidas quanto à sua missão, que, para ele, não
se separava da vocação revolucionária da classe operária. A autoridade absoluta
que um pequeno número, ou um só homem garante para si sobre “a vanguarda do
proletariado”, resolve a contradição entre o valor absoluto que se atribuiu,
pouco a pouco, ao Partido e os desvios da ação engajada em uma história sem
estrutura.
Um Partido que sempre tem razão precisa, permanentemente,
definir a linha justa entre o sectarismo e o oportunismo. Onde se situa essa
linha? A igual distância de dois recifes, o do oportunismo e o do sectarismo.
Só que esses dois recifes foram originalmente definidos por um decreto da
autoridade que, simultaneamente, define a verdade e os erros. E esse decreto é
forçosamente arbitrário, definido por um indivíduo que soberanamente decide
entre as pessoas e os grupos. A distância entre como o mundo seria, se a
doutrina original estivesse certa, e o mundo tal como se apresenta, torna a
verdade dependente das decisões equívocas e imprevisíveis de um intérprete
qualificado pelo Poder.
O texto acima resumido foi transcrito do livro “O Ópio dos
Intelectuais”, escrito por Raymond Aron e publicado em 1955 – antes,
portanto, da invasão da Hungria pelos tanques soviéticos - . Raymond Aron (1905-1983) foi um filósofo, professor e ideólogo
francês. É autor de “As
Etapas do Pensamento Sociológico” e “O Marxismo de Marx”,entre outros livros.
(*) relativo a ou próprio de Prometeu, um dos titãs da mitologia
grega, que teria roubado o fogo do Olimpo para dá-lo aos homens. Por esse
motivo Zeus o castigou, acorrentando-o a um rochedo do Cáucaso para que um
abutre bicasse permanentemente seu fígado.
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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