Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Roberto da Matta
Impossível não
pensar que o esporte moderno, aperfeiçoado numa Inglaterra
protoindustrializada, tenha sido inspirado pelos modelos parlamentares
republicanos, nos quais a escolha religiosa e a competição política não
conduziam à morte do adversário, mas era um direito a ser respeitado.
Parlamentos eleitos
e constituições revalidadas por todos num novo papel — o de cidadão, e não mais
o de aldeão, plebeu ou aristocrata-cortesão — são os exemplos para essas
atividades igualmente agregadoras como os esportes, nos quais o primeiro
aprendizado é conhecer e aceitar as regras.
Só que o estádio
não serve mais para a decisão política que definiria o destino de uma classe ou
sociedade, de uma crença ou costume, mas para o gozo não utilitário de assistir
a uma prova competitiva feroz, mas governada por normas e por árbitros
imparciais.
Um primeiro ponto
pode, então, ser assentado. O esporte exprime um cosmo e o jogo, por mais
errático que seja o seu resultado, segue rotinas. Tal como uma fábrica inglesa
de 1800, ele pode promover a vitória (lucros e produtividade) ou a derrota
(vitória do competidor ou falência). Num outro plano, o esporte seria um instrumento
de internalização de um tempo objetivo — uma duração quantificada e medida por
um relógio. Uma temporalidade que não é feita pelas nossas atividades, mas que
nos faz ou nos obriga a fazer certas coisas. Assim, o teatro, o cinema, as
corridas de cavalo e todas as competições esportivas começam a ter um tempo
para começar e terminar, e o usam como um limite de derrota ou vitória, já que
nenhum time de futebol é vitorioso para sempre, mas apenas numa partida. Em
outra, ele pode ter de enfrentar o peso da derrota.
Essa concretização
do tempo que pode ser de trabalho ou lazer — e pode ser comprado ou poupado,
mas não deve ser desperdiçado — é algo patente nos esportes modernos e no
futebol que amamos e praticamos com maestria. A modernidade transforma o tempo
em um jogador cuja atuação pode ser decisiva para o resultado de um jogo. Neste
sentido, ele pode ser mais importante do que um jogador.
Numa disputa de
Copa do Mundo, o tempo é tão sacralizado quanto o de um ritual religioso,
digamos — sem pretender ofender suscetibilidades — de uma missa cantada. E tal
como na missa, o campo de futebol, com suas linhas e círculos, reproduz na
esfera do entretenimento esperanças, coragem, fé, confiança, generosidade,
aplicação, disciplina, força de vontade, egoísmo e altruísmo. Todos esses
elementos constitutivos do sagrado. Esse sagrado que Durkheim definia como
sendo removido do ordinário e do profano.
A mais óbvia
separação ocorre entre espectadores e jogadores. Os primeiros são profanos e
desmarcados; os segundos são marcados e separados: são os que jogam e, como os
antigos gladiadores, podem morrer. Estão interditados e circulam numa área
tabu, semelhante à do padre no altar. Nela, o goleiro é o que guarda o
sacrário, ou o gol que o representa, como o relicário que, se ficar intocado ou
virgem, vai produzir a vitória num conjunto de pessoas intermediárias:
jornalistas e personagens que fazem parte das margens do ritual.
Mas notem que, tal
como o sagrado é dos atores e o profano dos torcedores, essa mesma segmentação
é refeita no próprio jogo e faz parte de sua estrutura. Temos, assim, o “nosso
time” — sagrado para nós; mas profano relativamente ao time adversário.
Ninguém pode
eliminar essa oposição entre “nós e eles” que tanto perturba o mundo real. Pelo
contrário, há incentivos para o combate de um lado e do outro, o que remete ao
dualismo perpétuo do bem contra o mal. Sem isso, simplesmente não haveria
movimento, jogo e significado.
O futebol é um
rompimento controlado com a paz, na qual há uma licença para uma guerra em que
os dois “exércitos” usam apenas uma bala: a bola, que é de todos e não é de
ninguém. A “bola mobile’’, que segue quem a controla e a possui com mais
competência. Empurrada no sacrossanto espaço do adversário, a bola — como uma
hóstia ao contrário — santifica o doador dando-lhe pontos: uma proximidade do
céu.
A metade de um
campo de futebol é estruturalmente idêntica à metade de um templo cristão,
inclusive com suas marcações retangulares. Neste esquema, quanto menor a
demarcação, maiores o perigo e a sacralização. Como sugeri, o sacrário é o gol
que, com sua rede, se torna uma porta invertida, aberta para dentro. Se o
beisebol jogado na América estadunidense dramatiza o home run (a corrida para a
fronteira e para casa) com que o individualismo americano tanto equaciona o
sucesso, pois sair e voltar da base triunfante é o “êxito”, o nosso futebol
simboliza a luta do bem contra o mal em toda a sua agonia.
Ainda mais...
Roberto DaMatta é antropólogo.
Originalmente publicado em O Globo em 21 de Maio de 2014.
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