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Por Carlos I. S. Azambuja
Quando em 1847 MARX e ENGELS foram
incumbidos pela Liga dos Comunistas (ex-Liga dos Justos), uma organização
revolucionária, de redigir o Manifesto Comunista, a revolução
parecia visível no horizonte.
Historicamente, em Palermo, na Sicília, em
janeiro de 1848, ocorreu a primeira de uma série de explosões populares. Foi
seguida de outra, em fevereiro de 1848, em Paris. Nesse mês, a primeira edição
do Manifesto, escrita em alemão, apareceu em Londres. A partir de então, a
revolução iria adquirir uma dimensão europeia, envolvendo a França, Prússia, o
império austríaco e demais Estados da Confederação Germânica, a região do norte
da Itália - ocupada pela Áustria -, o Reino da Sardenha, os Estados do Papa e o
Reino de Nápoles.
Esses eventos eram tidos como a primavera
dos povos. Era tratados de revoluçõespopulares, já proletárias em
alguns centros urbanos, como Paris, Berlim, Viena e Milão;nacionais, pela
independência em relação ao estrangeiro; e democráticas, pois buscavam a
derrubada das monarquias absolutistas.
Ora, se as revoluções estavam chegando,
tornava-se necessário elaborar uma proposta que fosse ao seu encontro, que as
tornassem compreensíveis ao povão, indicando caminhos e programas. O Manifesto
Comunista de 1848, anunciando a emergência de uma época revolucionária,
cumpriu esse papel.
Embora assinado por MARX e ENGELS, o Manifesto é
de autoria exclusiva de MARX, conforme o próprio ENGELS viria a declarar 35
anos depois, em junho de 1883.
A frase que ficaria famosa e constituiria o
fecho do Manifesto - “Proletários de todos os países, uni-vos” é de
autoria de KARL SHEPPER e foi extraída do primeiro e único número do jornal da Liga
dos Comunistas, publicado em setembro de 1847, o “Kommunistische
Zeitschrift”. Também a frase “Os trabalhadores nada têm a perder,
além de seus grilhões” não foi imaginada por MARX e ENGELS e sim por MARAT,
quando da Revolução Francesa.
O Manifesto Comunista assemelha-se
a um panfleto, no qual MARX utilizou 76 vezes os termos “proletário” e “proletariado”,
e 193 vezes “burguês” e “burguesia”.
Dos quatro capítulos que compõem o Manifesto,
o mais conhecido e fundamental é o primeiro - “Burgueses e Proletários”-, considerado
pelos experts uma das peças realmente brilhantes da literatura
marxista. Todo esse primeiro capítulo reúne conclusões às quais MARX chegara no
decorrer de seus trabalhos anteriores.
O segundo capítulo situa os comunistas no
movimento operário, fazendo uma afirmação audaciosa: a de que “todos os
comunistas são proletários”, o que foi comprovado não ser verdade.
O terceiro capítulo - “Literatura
Socialista e Comunista”- analisa os numerosos movimentos de opinião que,
na época, buscavam a hegemonia entre os operários. Com exceção dos grandes
utopistas de então - SAINT-SIMON, FOURIER e OWEN - em cujos escritos foram
buscadas as críticas à sociedade burguesa, MARX e ENGELS tecem críticas
contundentes a todos os demais movimentos, opondo a seus socialismos pacifistas
e reformistas, o programa revolucionário do partido do proletariado.
O último capítulo define qual deve ser a
tática dos comunistas, diferente, segundo os países e situações objetivas do
movimento operário em cada um deles.
A idéia-base central do Manifesto têm,
embutidas, pelo menos quatro noções: noção de classe, noção de proletariado,
noção de burguesia e noção de luta de classes.
Quando o Manifesto foi publicado,
em fevereiro de 1848, a burguesia era uma classe em plena expansão econômica,
social e política. Para MARX, todavia, a emancipação humana só se tornaria
possível pela supressão dialética da burguesia e do proletariado. Surgiria,
então, “a riqueza verdadeiramente espiritual do indivíduo”.
Essa transformação, todavia, só poderia ser
levada a efeito pelo comunismo que, para MARX, “não é um Estado que deva
ser estabelecido, nem um ideal por cujo modelo a realidade deva comportar-se,
mas sim um movimento real, que suprima o atual estado de coisas”. Mas,
para isso - concluiu - “é necessário que os operários estejam armados e
organizados”.
A questão decisiva, segundo o Manifesto,
e nunca respondida por MARX e nem por seus epígonos, está em saber se, uma vez
elevado à categoria de “classe dirigente” e tendo liquidado as
antigas relações de produção, o proletariado, representado por seu partido,
o“partido da classe operária”, teria condições de retirar a essa sua supremacia
o caráter de supremacia de classe, deixando o Estado fenecer, como
profetizou MARX.
O Manifesto deu início ao
pervertido sonho platônico de que um Estado onisciente e absoluto transformaria
a condição humana pela doutrinação das novas gerações dentro de um novo modelo
de vida, tendo por trás o partido da classe operária. Mas doutrinar pessoas não
é fácil, como qualquer rabino poderá testemunhar.
Hoje, passados mais de 150 anos, é
interessante conhecer as opiniões de diversos marxistas, ex-marxistas e
não-marxistas sobre o Manifesto (jornal Folha de São Paulo de
1 de fevereiro de 1998, caderno Mais):
O presidente FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
declarou que “(...) Com o tempo, os equívocos do texto se fizeram mais
evidentes e o que era a promessa de uma nova época foi envelhecendo. A queda do
Muro de Berlim foi a confirmação disso (...) Mas o Manifesto, como o restante
da obra de MARX, tem o seu lugar na história e continuará a ser uma referência
para todos os que procurem entender o que aconteceu nos últimos 150 anos”.
Ex-frei LEONARDO BOFF: “(...) A luta
dos seres humanos não é só por pão. É também por sonho, por beleza, por uma
conciliação final. E esse conteúdo é a força permanente do Manifesto”.
Cientista político e escritor marxista ERIC
HOBSBAWN: “(...) É obviamente o texto político mais importante e de maior
influência desde a Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, na Revolução
Francesa (...)”.
Ex-Vice-presidente MARCO MACIEL: “(...) O
Manifesto é, sobretudo, um panfleto político de mobilização, numa época crucial
da vida de MARX (...)”.
Ex-Prefeita de São Paulo LUIZA ERUNDINA: “(...)
Significou um marco na minha formação política e na minha compreensão da
História (...)”.
Deputado Federal DELFIM NETTO: “(...)
Se você se deixa dominar pela construção lógica do Manifesto, você entra numa
gaiola e depois tem dificuldade para sair (...)”.
Para ROBERT KURZ, sociólogo alemão, editor
da revista “Krisis”, autor de“Colapso da Modernização” e “Últimos
Combates”, editados pela Paz e Terra e Vozes: “As teorias
de MARX só podem morrer e tornar-se históricas junto com o capitalismo (...) A
luta de classes chegou ao fim e com ela o Manifesto Comunista também perdeu
força. A sua linguagem instigante petrificou-se em documento histórico”.
Para ALAIN TOURAINE, sociólogo e cientista
político francês, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de
Paris, e autor de vários livros, entre os quais “A Crítica da Modernidade”,
editado em português pela editora Vozes: “Mais de três quartos
de século depois da revolução soviética, quase todos os regimes inspirados por
essa revolução desapareceram, deixando em sua esteira uma imensa mancha de
sangue e o buraco negro da decomposição econômica”.
O certo é que, no Manifesto, MARX e
ENGELS apresentaram o mundo burguês como uma unidade contraditória; o paradoxo
de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os
instrumentos de produção e, com ele, o conjunto das relações sociais.
Uma vez que a sociedade burguesa
reproduz-se ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a
obsolescência e uma incontável destruição de toda estrutura de produção
existente, em um determinado momento subverte os cenários histórico e político.
A constância dessa transitoriedade foi materializada na famosa frase de MARX,
contida no primeiro capítulo do Manifesto: “Tudo que é sólido se
desmancha no ar”.
Segundo o Manifesto, o socialismo não
resultaria apenas de uma vontade política, mas do desenvolvimento fatal das
leis econômicas vinculado a uma filosofia da História. Com esse raciocínio, o
socialismo foi encarado como uma inevitabilidade.
Por outro lado, LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES,
professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, menciona o fato de
que, no Manifesto, há também declarações contraditórias, tais como a
afirmação de que a burguesia “é uma classe dinâmica e revolucionária”,
embora, num trecho posterior ela seja definida como “o agente passivo e
inconsciente do progresso da indústria”.
A verdade é que o êxito do Manifesto deriva
de sua parte formal, do estilo adotado, com seu tom apocalíptico, profético,
irônico, indignado e auto-suficiente. Encarado desde esse ângulo, ele é tido
como perfeito.
Poderia também ser dito que o Manifesto previu
o atual estágio de globalização da economia: “Impelido pela necessidade de
mercados sempre novos, a burguesia invade todo o Globo (...) Pela exploração do
mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao
consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou da
indústria sua base local”.
Segundo o Manifesto, as crises
destruiriam as forças produtivas, surgindo, então, o proletariado salvador,
como um Messias, sofredor sob o capitalismo, que se levantaria para conduzir a
humanidade ao Paraíso. Historicamente, no entanto, nenhum regime socialista resultou
de uma crise econômica, mas de eventos políticos e militares. E, na maioria das
vezes, crises econômicas conduziram a regimes de direita e não de esquerda.
Outro tema abordado no Manifesto foi
o referente à pauperização do trabalhador, sob a alegação de que a
burguesia não pode manter seu domínio “porque não pode assegurar a existência
de um escravo”. Todavia, diante das evidências do aumento geral do padrão
de vida das classes trabalhadoras sob o capitalismo, esse tema da pauperização vem
sendo, estrategicamente, deixado no esquecimento pelos marxistas.
O êxito do Manifesto não se deve
às verdades que contém, mas a outros fatores. No entanto, as lideranças
sindicais, pragmáticas, tão logo obtiveram um espaço no sistema de poder das
sociedades capitalistas, de imediato se desinteressaram pelas complicadas e
esotéricas análises da intelligentzia, porta-voz da classe operária.
Nesse sentido, o marxismo há muito já
abandonou o movimento sindical - ou foi abandonado por ele -, deslocando-se
para as universidades, transformando-se na ideologia dominante de um segmento
da intelectualidade de classe média burocrática, dando origem ao “marxismo
acadêmico”. Já, nos países em que o socialismo real foi implantado, ele
transformou-se rapidamente na doutrina oficial da classe que passou a controlar
o partido-Estado.
O estatismo, por seu turno, não foi uma
invenção ou um desvio ideológico do leninismo ou do stalinismo, como
alguns asseguram, mas do próprio marxismo, pois o Manifestojá citava as
principais medidas de transição ao socialismo: expropriação da propriedade
fundiária; centralização do crédito e do transporte nas mãos do Estado;
multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao
Estado e - antecedendo TROTSKY - a organização de exércitos industriais,
particularmente para a agricultura.
Muito antes de qualquer direitista, BAKUNIN,
um anarquista - que traduziu oManifesto para a primeira edição em russo -
havia posto o dedo na ferida. Falando de MARX, ele escreveu: “Trata-se de
um comunista autoritário, um partidário da libertação e da organização do
proletariado pelo Estado. Conseqüentemente, de cima para baixo, pela
inteligência e o saber de uma minoria esclarecida que professa o socialismo, e
exerce, em seu proveito, uma autoridade ilegítima sobre as massas estúpidas e
ignorantes”.
A doutrina, dita científica, quando
posta em prática, não passou de uma pretensão de consenso, estimulada e mantida
pela coação. E hoje, quem pretenda ainda conhecer e saber o que é o marxismo ou
o marxismo-leninismo, estará perdendo tempo se for a Cuba, China ou Vietnã,
países onde a doutrina está cada vez mais descaracterizada, embora ainda se equilibre
precariamente.
Depois de um século e meio, é possível
distinguir o que resistiu à prova do tempo no texto que se transformou na arma
mais popular do socialismo. Não vingou a idéia de que a dominação da burguesia
era já incompatível com o tempo histórico; as previsões a respeito dotriunfo
inevitável de uma revolução anticapitalista também não prevaleceram; as
esperanças depositadas no proletariado parecem ter extrapolado suas
possibilidades; e, finalmente, um certo tipo de messianismo, presente nas
páginas do Manifesto, não foi respaldado pela História.
Os proletários, transformados em cidadãos,
sempre tenderam, em sua grande maioria, a abandonar a perspectiva
revolucionária, passando a engrossar, em todo o mundo, as hostes dos partidos
reformistas. E, nos países do socialismo real, tiveram seu poder usurpado
desde o primeiro momento, pois a palavra-de-ordem de LENIN, antes da Revolução
Bolchevique, de “todo o poder aos sovietes” não passou de uma farsa. “Todo
o poder” nunca esteve nas mãos dos sovietes, mas, desde o primeiro momento
com o Secretário-Geral do partido, o Grande Timoneiro.
Ao final, as conseqüências sociais,
políticas e econômicas da experimentação das teses formuladas por MARX e
ENGELS, difundidas pelo Manifesto Comunista, são conhecidas, e os
comunistas de hoje mostrar-se-iam sábios se reconhecessem que aquele conjunto
de noções elaboradas há mais de 150 anos para um mundo que não cessa de
transformar-se não é apropriado para fornecer uma análise correta para a
realidade atual.
Se o instrumental imaginado por MARX
continua a atrair os espíritos, não será, certamente, em razão do seu valor
científico, mas em virtude do poder de sugestão emocional que traz consigo.
Após a 2ª Guerra Mundial, na década de 50,
os países ditos comunistas proclamaram o socialismo real, ao passo que os
partidos social-democratas compreendiam o socialismo como um capitalismo
extremamente regulado pelo Estado e contrabalançado por uma importante parcela
estatal.
Hoje, após seu desmantelamento, o dito socialismo
real viu-se atingido pela caducidade histórica e, ao contrário de alguns
observadores otimistas, essa caducidade não se transformou em um tônico para
beneficiar a Social-Democracia que, na Conferência de Bad Goldesberg, em
1959, já havia feito sua opção histórica pelas reformas através da via
constitucional, passando a defender, especialmente na Europa Ocidental, o pleno
emprego, o Estado do bem-estar social, programas para a redução do desemprego,
e uma economia mista com um setor obrigado a prestar contas ao governo. Hoje,
no entanto, a Social-Democracia parece impotente, pois todos esses elementos
estão em declínio, em todo o mundo.
O pleno emprego desapareceu, ocasionando
dificuldades para deter a escalada dos custos da Previdência Social, a
universalização do ensino não vem produzindo os efeitos desejados, e as escolas
públicas, espaços empobrecidos e abandonados, transformaram-se em uma fonte
endêmica de insatisfação. Também a autoridade dos governos e parlamentos parece
enfraquecida face à corrupção endêmica e a transferência de poder para
conselhos intergovernamentais ou para os mercados de capitais, que gozam de
extraterritorialidade. As estratégias nacionais vêm desaparecendo por toda a
parte, e o espaço político cada vez mais se desloca dos partidos para os shows de
TV e, dos discursos, para os clips.
Embora em todos os países continue
existindo uma esquerda além dos limites da Social-Democracia, ela pouco ou nada
tem contribuído para modificar os dilemas programáticos, seja dela própria,
seja da Social-Democracia.
Um cenário como esse implica, obviamente,
numa perda do papel peculiar da esquerda em geral e também dos partidos
social-democratas, pois transforma-os em uma força francamente comprometida,
aos olhos do povo, com o capitalismo sem os antigos adereços sociais. Todavia,
esses partidos, apesar de terem abandonado a idéia original de socialismo,
fazem questão de manter a noção de esquerda, embora seja só para
participar de eventos. Essa noção sempre renderá dividendos no sofisticado
mercado político, embora nada mais seja do que um rótulo alegórico.
Bibliografia: “O Manifesto Comunista faz 150 Anos” -
Caderno “Mais”, jornal Folha de São Paulo de 01 Fev 98.
“Manifesto do Partido Comunista”, MARX e
ENGELS, editora Escriba, São Paulo.
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