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Por Carlos I. S. Azambuja
O dia 4 de novembro de 1970, quando
Salvador Allende, então senador pelo Partido Socialista, saiu do Congresso
rodeado pelo povo, dirigindo-se ao Palácio La Moneda para assumir a presidência
do Chile, marcou o início no país de um período pré-revolucionário, com o qual
a luta de classes intensificou-se como nunca antes.
Todos os militantes do Movimiento de
Izquierda Revolucionaria (MIR) – uma organização fundada em 1965 e voltada para
a luta armada - que se encontravam encarcerados, cumprindo penas, foram
anistiados por Allende em 31 de dezembro de 1970.
Graças a isso, a partir daí teve
início uma aliança de fato, não formal, entre a Unidade Popular (PC, PS, etc.,
coligação de partidos que elegeu Allende) e o MIR. A aliança, porém, teve um
começo muito difícil, pois o Partido Comunista Chileno tinha uma séria
discrepância política com o MIR. Nesse sentido, Allende interveio e, em uma
reunião presidida por ele (conseguida por seu sobrinho, Andrés Pascal Allende
que era membro da direção do MIR), com delegações do PC e do MIR, exigiu que o
PC estabelecesse uma relação de respeito e entendimento com o MIR.
A UP, que em seu programa planejava
transformar o Estado em um Estado Popular, assinalava que seria necessário
eleger uma Assembléia do Povo e o próprio Allende articulava a luta
para desenvolver o Poder Popular, que entendia como a extensão da
participação popular na administração econômica, social e cultural do país,
através de uma nova Constituição Política que institucionalizaria essa
incorporação massiva ao Poder.
Em uma série de reuniões entre
Allende e os dirigentes do MIR, sempre levados ao presidente Allende por seu
sobrinho, foi-lhe dito, com franqueza, que o MIR discordava de sua estratégia
de levar adiante o processo de transição ao socialismo somente dentro da
institucionalidade vigente, pois as classes dominantes não aceitariam o fim de
seus privilégios e a transformação do Estado-Burguês, e que as camadas
médias se juntariam aos possuidores de terras e à grande burguesia nacional e
estrangeira para, juntos, enfrentarem o governo popular e que, na melhor das
hipóteses, se poderia conseguir que uma parte das Forças Armadas se somasse ao
campo popular, porém o enfrentamento armado seria inevitável.
Aproveitando a ampliação das
liberdades democráticas, o MIR passou a impulsionar a mobilização de massas. A
partir das ações diretas dos índios mapuches e com o alento do Movimento
Camponês Revolucionário (MCR), foram feitas uma série de invasões de terras, no
que foi chamado verão quente de 1971. Também foram impulsionadas as
mobilizações sindicais e as ocupações de indústrias e propiciada a constituição
de novos acampamentos de trabalhadores sem teto.
O MIR aproveitou também a participação
de seus militantes em tarefas da segurança do presidente – Grupo de Amigos
do Presidente (GAP) - para lograr um silencioso avanço em instrução
militar, logística e Inteligência. Foi dado um maior impulso à vinculação com setores
democráticos das Forças Armadas e de autodefesa das massas. O MIR, assim,
se estendeu organicamente através do país.
No entanto, a aliança informal entre
a UP e o MIR começou a deteriorar-se a partir do segundo semestre de 1971. O
PC, outra vez, lançou-se a atacar o MIR publicamente. A visita de Fidel Castro
ao Chile porém, conteve a polêmica. Durante boa parte do mês de novembro e
princípios de dezembro, Fidel percorreu o país, alentando com sua palavra e
exemplo as aspirações revolucionárias. Para apoiar a segurança periférica nos
atos e viagens de Fidel, o MIR se mobilizou e participou coordenadamente com a
equipe de segurança cubana. Seus dirigentes reuniram-se várias vezes com Fidel,
que sempre insistiu na necessidade de ser preservada a unidade do conjunto da
Esquerda.
Em março de 1972, os dirigentes dos
partidos de oposição e das federações empresariais se reuniram para organizar
um vasto plano de mobilizações de resistência civil ao governo.
Apesar dos bons resultados da
política econômica que o governo conseguiu durante o ano de 1971, essa
política, no primeiro semestre de 1972, começou a dar mostras de esgotamento e
a partir de 1972 o desabastecimento começou a ser sentido.
Desde o início de 1972 o MIR passou a
agitar sobre a necessidade de substituir o insuficiente Programa da UP por um
novo Programa do Povo.
Entre os 10 pontos fundamentais, sugeria a
desapropriação imediata de todas as empresas norte-americanas; a expropriação
de todas as empresas-chave da indústria; o controle operário de todas as
empresas privadas; um apelo às tropas, soldados, suboficiais e oficiais democratas para
enfrentar o golpismo e unir-se ao povo; a luta pela dissolução do Parlamento e
a criação de órgãos do Poder Popular a partir dos Conselhos Comunais
de trabalhadores e camponeses.
Em junho de 1972, o setor reformista
da UP acabou por impor-se e Allende substituiu o Ministro da Fazenda, Vuskovic,
por Orlando Millas, do PC. Millas implementou uma política de ajuste que fez
com que a inflação disparasse e não fosse contido o crescente desabastecimento,
fazendo com que aumentasse o mal-estar nos setores médios e populares.
Em 22 de julho de 1972 foi
constituída pelo MIR a Assembléia do Povo de Concepción, como expressão de um Poder
Popular regional autônomo, iniciativa que foi duramente atacada pelo PC e
pelo próprio presidente Allende.
A Unidade Popular e o governo perdiam
cada vez mais sua iniciativa na luta contra a reação burguesa. A inflação
estava em constante alta, o desabastecimento e o mercado negro se ampliavam, o
chamado terrorismo de direita se multiplicou e as marchas e agitação da
oposição eram crescentes. A campanha antigovernamental da imprensa e das rádios
opositoras era massiva.
Paralelamente ao desenvolvimento das
Juntas de Abastecimento Populares (JAPs) e dos Comitês de Autodefesa, foram
criados os Cordões Industriais na cidade e se estenderam os Comandos Comunais
no campo, iniciando-se assim, desde a base, formas elementares de Poder
Popular.
Os Comandos Comunais, impulsionados
pelo MIR, buscavam unificar localmente as diferentes camadas do povo e assentar
as bases da constituição de Assembléias do Povo regionais. Foi promovido o
desenvolvimento das tarefas de autodefesa miliciana, do controle operário, das
JAPs, etc., e foi redobrada a agitação dentro das Forças Armadas. Todavia,
ficou evidenciado que o MIR, por si só, não dispunha de força suficiente para
aproveitar plenamente a conjuntura revolucionária e necessitava que também a
esquerda da UP se voltasse, com decisão, para a construção do Poder
Popular. Todavia, a forte oposição dos setores reformistas a fizeram vacilar.
Em novembro, o presidente Allende
nomeou vários generais para o Ministério, como garantidores da
institucionalidade e da paz social. Com o voto favorável da UP, o Parlamento
votou a Lei de Controle de Armas, que permitia que as Forças Armadas atuassem
sobre os grupos civis armados que introduziam a violência com seus atentados,
sabotagens e enfrentamentos e, sobretudo, outorgou aos militares um papel
reitor na vida política do país. A própria Esquerda, assim, permitiu a função
tutelar das Forças Armadas.
Paralelamente, os operários da
empresa têxtil Hirmas que não obedeceram ao chamado do governo para devolver a
indústria ocupada, e que impulsionaram a constituição de Comandos Comunais de
Trabalhadores e as tarefas de autodefesa, puseram em frente à fábrica um enorme
cartaz que dizia: “Defendamos esse governo de merda!”. Essa frase resumia,
naquele momento, a tática revolucionária da Esquerda.
Em fins de 1972, o MIR havia logrado
crescer no campo e na cidade, camadas do povo onde a influência da esquerda
tradicional não era muito forte. Porém, junto à classe operária, apenas era
incipiente o trabalho político do MIR. Daí a importância do papel da esquerda
do Partido Socialista na acumulação de força revolucionária dentro da classe
operária. Porém, seus dirigentes nunca assumiram com conseqüência as tarefas de
construção do Poder Popular e jamais decidiram romper as amarras que os ligavam
ao reformismo.
O MIR desenvolveu também aquilo que
era chamado de “frentes intermediárias de massas”: FTR (trabalhadores urbanos),
MCR (camponeses), MPR (povoadores), FER (estudantes), etc. Ao iniciar-se o
período pré-revolucionário (dezembro de 1970), o MIR não superava os 3 mil
membros mas em 1973 os militantes já eram 10 mil, e a soma das “frentes
intermediárias” superava os 30 mil. Em conjunto, o mirismo organizado
agrupou entre 40 e 45 mil pessoas.
Em março de 1973, o dirigente Renan
Fuentealba foi substituído na direção da Democracia Cristã por Patrício Aylwin
(eleito presidente do Chile nos anos 90), que representava a linha dura, isto
é, a estratégia de deter o “avanço do marxismo” utilizando todos os meios,
inclusive a resistência civil e a intervenção militar.
O MIR, por sua parte, convocou a
Esquerda e o movimento de massas para enfrentar a ofensiva através de uma
contra-ofensiva revolucionária apoiada na mobilização direta das massas,
visando debilitar as bases do poder burguês, organizar e defender o poder
popular e ganhar os setores democráticos das Forças Armadas.
Como encarregado do MIR para o
trabalho junto aos tais setores democráticos das Forças Armadas,
coube a Andrés Pascal Allende organizar uma reunião de Miguel Enriquez, Carlos
Altamirano (Secretário-Geral do PS) e Oscar Guillermo Garretón
(Secretário-Geral do MAPU), com uma delegação de suboficiais e marinheiros que
se haviam organizado em oposição aos oficiais da Armada. O MIR, desde o ano de
1969 tinha vínculos com militares progressistas e muitos eram
militantes miristas.
Andrés Pascal Allende reuniu-se
diversas vezes com coronéis, majores e capitães que simpatizavam com o
presidente Allende. Todos reclamavam uma política do governo mais ofensiva
contra a oficialidade sediciosa e a coordenação dos militares democráticos com
as organizações populares para que, ante o perigo de um golpe, eles pudessem
dotá-las de armas das próprias FF AA.
O problema era que para tomar a
iniciativa de atacar ofensivamente os golpistas e derrotá-los, o MIR
tinha que fazê-lo nos espaços urbanos, constituindo amplas unidades milicianas
regulares, orientadas com os militantes das tropas militares das instituições
armadas, tudo isso acompanhado da organização do Poder Popular das
massas.
Paralelamente, o MIR tinha que se
preparar, também, para uma resistência política e ideológica em condições
repressivas muito duras, mas carecia de tempo útil para a construção de força
suficiente para ocupar todos os espaços e constituir distintos tipos de força
ao mesmo tempo.
Buscando cumprir essas tarefas, a
limitada capacidade do MIR foi dispersada e a organização foi feita de uma
forma híbrida, o que neutralizou sua eficiência tática ante uma ou outra
possibilidade.
Em meados de 1973 a chamada reação,
em seu conjunto, aumentou sua ofensiva. Multiplicaram-se os atentados e
sabotagens. Em 26 de julho foi assassinado o comandante Arturo Araya, ajudante
de ordens e amigo pessoal do presidente. Os caminhoneiros iniciaram uma
paralisação indefinida, à qual se somaram comerciantes e profissionais
liberais, intensificando o boicote empresarial, acompanhado de um intenso
fustigamento parlamentar e uma crescente campanha da imprensa. O governo não
apenas perdeu todo o controle da economia que se debatia entre a hiperinflação
e o desabastecimento, como tampouco nada de efetivo pôde fazer contra a ação
revolucionária adversa.
No início de agosto de 1973, após
ordenar o aquartelamento de seu pessoal, a Marinha desencadeou uma forte
repressão interna, detendo mais de 300 suboficiais e marinheiros, a maioria
vinculada ao MIR. Em outros ramos das FF AA começou-se a substituir, licenciar
e sancionar os militares considerados de esquerda.
Em meados de agosto, na Marinha e na
Aeronáutica a oficialidade descontente com o governo era maioria, embora no
Exército ainda fosse minoritária. A maioria dos generais do Exército inclinava-se,
todavia, para obrigar Allende a ceder o Poder às FF AA, mediante a constituição
de um Ministério somente de militares ou então renunciar. Essa era a forma do “golpe
brando”. Então, os partidários de um “golpe duro” ainda eram minoria.
Porém, uma provocação de esposas de
oficiais que foram para a frente da casa do general Carlos Prats, Ministro do
Exército, para exigir sua renúncia, foi a gota d’água. Quando o general Prats
pediu ao corpo de oficiais-generais que assinassem um documento de desagravo à
sua pessoa, mais da metade se negou a fazê-lo e isso fez com que ele, para
manter a unidade corporativa, apresentasse sua demissão do cargo, sendo
substituído pelo general Augusto Pinochet no dia 22 de agosto de 1973.
Nesse mesmo dia 22 de agosto a Democracia
Cristã aprovou uma resolução, na Câmara dos Deputados, declarando “ilegal” o
governo de Salvador Allende. Assim, a sorte do governo parecia selada.
Nesse instante, o MIR deu-se conta de
que a desestruturação dos oficiais e suboficiais vinculados à esquerda, no
interior das FF AA, era tamanha que não mais se poderia contar com eles para a
obtenção de armas.
O presidente Allende, em uma ação
desesperada, iria convocar nos próximos dias um plebiscito no qual seria
provavelmente derrotado. Porém, os partidários do “golpe duro” lograram
impor-se e se adiantaram, desencadeando o golpe de 11 de setembro. No dia
seguinte, o presidente Allende deveria anunciar o tal plebiscito, em um ato que
seria realizado na Universidade Técnica do Estado. Mas esse dia não veio, pois
Allende cometeu o suicídio...
A partir daí, o MIR mergulhou na mais completa
clandestinidade e, em pouco tempo, seria totalmente exterminado. Mas essa é
outra história...
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Um comentário:
Gostei muitíssimo deste artigo,mas até parece história repetida,sempre e sempre...na mesma época e na mesma América Latina;coincidências...
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