“Não é função de nosso governo
impedir que o cidadão caia em erro; é função do cidadão impedir que o governo
caia em erro”. (Robert Jackson, juiz da Suprema Corte dos EUA, 1950).
Por João Ivo Girardi
É um fato da vida em nosso pequeno
planeta sitiado que a tortura disseminada, a fome e a irresponsabilidade
criminosa das autoridades sejam mais prováveis nos governos tirânicos do que
nos democráticos. Por quê? Porque é muito menos provável que os governantes dos
primeiros sejam depostos pelos seus malefícios do que os governantes dos
últimos.
Esse é o mecanismo de correção de
erros na política. Os métodos da ciência - com todas as suas imperfeições -
podem ser usados para aperfeiçoar os sistemas sociais, políticos e econômicos,
e isso vale, na minha opinião, para qualquer critério de aperfeiçoamento que se
adotar.
Mas como é possível, se a ciência se
baseia em experimentos? Os humanos não são elétrons, nem ratos de laboratório.
Mas toda lei do Congresso, toda decisão da Suprema Corte, toda diretriz
presidencial de segurança nacional, toda mudança na taxa de juro preferencial é
um experimento.
Toda mudança na política econômica,
todo aumento ou decréscimo no financiamento do programa educacional, todo
endurecimento das sentenças criminais é um experimento. Usar agulhas
descartáveis, distribuir preservativos grátis ou descriminar a maconha são
experimentos. O comunismo na Europa oriental, na União Soviética e na China foi
um experimento. Privatizar o sistema de saúde mental ou as prisões é um
experimento. O fato de o Japão e a Alemanha Ocidental terem investido muito em
ciência e tecnologia e quase nada em defesa - e terem descoberto que suas
economias floresceram - foi um experimento.
Em quase todos esses casos, não se fazem
experimentos de controle adequados, nem as variáveis são suficientemente
isoladas. Ainda assim, até certo grau, com frequência útil, as idéias políticas
podem ser testadas. O grande desperdício seria ignorar os resultados dos
experimentos sociais por parecerem ideologicamente intragáveis.
Não existe atualmente nenhuma nação
na Terra em condições ótimas para a metade do século XXI. Enfrentamos uma
abundância de problemas sutis e complexos. Portanto, precisamos de soluções
sutis e complexas. Como não existe teoria dedutiva da organização social, o
nosso único recurso é o experimento científico - tentando às vezes em pequenas
escalas (por exemplo, em nível da comunidade, cidade e estado) uma ampla gama
de alternativas.
Quando alguém se tornava primeiro-ministro
na China no século V a.C., uma das prerrogativas do poder era que ele começava
a construir um estado-modelo em seu distrito ou província natal. O grande
fracasso de sua vida, lamentava Confúcio, foi nunca ter chegado a desfrutar
dessa experiência.
Até um exame casual da história
revela que nós, humanos, temos uma tendência triste de cometer os mesmos erros
mais de uma vez. Temos medo de estranhos ou de qualquer pessoa que seja um
pouco diferente de nós. Quando ficamos com medo, começamos a maltratar as
pessoas. Temos botões de fácil acesso que liberam emoções poderosas ao serem
apertados. Manipulados por políticos inteligentes, podemos chegar até o mais
alto grau de irracionalidade.
Dêem-nos o tipo certo de líder e,
como os pacientes mais sugestionáveis dos hipnoterapeutas, faremos alegremente
quase tudo o que ele quiser, mesmo coisas que sabemos estarem erradas. Os
idealizadores da Constituição eram estudiosos de história. Por reconhecer a
condição humana, procuraram inventar um meio de nos manter livres a despeito de
nós mesmos.
As descobertas e as atitudes
científicas eram comuns naqueles que inventaram os Estados Unidos. A autoridade
suprema, superior a qualquer opinião pessoal, a qualquer livro, a qualquer
revelação, eram - como diz a Declaração da Independência - as leis da natureza
e do DEUS da natureza.
Benjamin Franklin era respeitado na
Europa e na América como o fundador da nova área da física elétrica. Na
Assembléia Constituinte de 1789, John Adams recorreu repetidamente à analogia
do equilíbrio mecânico nas máquinas; outros, à descoberta de William Harvey da
circulação do sangue. No final da vida, Adams escreveu: Todos os homens são
químicos desde o berço até o túmulo... O Universo Material é uma experiência
química.
James Madison usou metáforas químicas
e biológicas em The federalist papers. Os revolucionários norte-americanos eram
criaturas do Iluminismo europeu, o que nos dá um pano de fundo essencial para
compreender as origens e o objetivo dos Estados Unidos. A ciência e seus corolários
filosóficos, escreveu o historiador norte-americano Clinton Rossiter, foram
talvez a força intelectual mais importante que moldou o destino dos Estados
Unidos no século XVIII [...].
Franklin era apenas um dentre vários
colonos de visão avançada que reconheciam o parentesco do método científico e
do procedimento democrático. O livre exame, a livre troca de informações, o
otimismo e a autocrítica, o pragmatismo, a objetividade - todos esses
ingredientes da futura república já estavam ativos na república científica que
floresceu no século XVIII.
Thomas Jefferson era cientista.
Jefferson foi um de meus primeiros heróis, não por causa de seus interesses
científicos (embora eles tenham ajudado a moldar a sua filosofia política) mas
porque, talvez mais do que qualquer outra pessoa, foi responsável pela
propagação da democracia em todo o mundo. A idéia - emocionante, radical e
revolucionária na época (em muitos lugares do mundo continua a ser) - é que as
nações não devem ser governadas pelos reis, nem pelos padres, nem pelos chefões
das grandes cidades, nem pelos ditadores, nem por um conluio militar, nem por
uma conspiração de facto dos ricos, mas pelas pessoas comuns, trabalhando
juntas. Jefferson não era apenas um teórico influente dessa causa; também estava
envolvido na prática, ajudando a criar a grande experiência política
norte-americana, que desde então tem sido admirada e imitada em todo o mundo.
Numa carta redigida alguns dias antes
de sua morte, ele anotou que a luz da ciência é que tinha demonstrado que a
maioria da humanidade não nascera com selas nas costas, nem uns poucos
privilegiados de botas e esporas. Na Declaração da Independência, escrevera que
nós todos devemos ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos inalienáveis.
E, se a definição de todos estava vergonhosamente incompleta em 1776, o
espírito da declaração era bastante liberal para que hoje esse todos seja muito
mais inclusivo. Jefferson ensinou que todo governo degenera, quando fica
entregue apenas aos governantes, porque estes - pelo próprio ato de governar -
abusam da confiança pública.
Quando consideramos os fundadores de
nossa nação - Jefferson, Washington, Samuel e John Adams, Madison e Monroe,
Benjamin Franklin, Tom Paine e muitos outros -, temos diante de nós uma lista
de pelo menos dez e talvez até dezenas de grandes líderes políticos. Eles
tinham uma boa educação. Produtos do Iluminismo europeu, eram estudiosos da
história.
Conheciam a falibilidade, a fraqueza
e a corruptibilidade humanas. Eram fluentes na língua inglesa. Escreviam seus
próprios discursos. Eram realistas e práticos, e ao mesmo tempo motivados por
princípios elevados. Não verificavam as pesquisas de opinião para saber o que
pensar naquela semana. Sabiam o que pensar. Tinham familiaridade com o
pensamento de longo prazo, planejando um futuro bem mais distante do que a
próxima eleição. Eram auto-suficientes, não precisando das carreiras do
político e lobista para ganhar a vida. Eram capazes de revelar o melhor entre
nós.
Interessavam-se pela ciência, e pelo
menos dois deles eram versados nela. Tentaram determinar um rumo para os
Estados Unidos a longo prazo - muito menos pelo estabelecimento de leis do que
pela imposição de limites aos tipos de lei que podiam ser aprovados.
Uma das razões para a Constituição
ser um documento ousado e corajoso é que ela permite mudança contínua, até da
própria forma de governo, se assim desejar o povo. Como ninguém é bastante
sábio para prever as idéias que vão suprir necessidades sociais urgentes -
mesmo que elas sejam contrárias à intuição e tenham sido perturbadoras no
passado -, esse documento tenta garantir a expressão mais plena e livre de
todas as opiniões.
Há certamente um preço. A maioria de
nós é a favor da liberdade de expressão quando há o perigo de nossas opiniões
serem reprimidas. Mas não ficamos assim tão contrariados quando opiniões que
desprezamos enfrentam um pouco de censura aqui e ali. No entanto, dentro de
certos limites rigorosamente circunscritos.
Ainda que façam troça dos valores
judaicos, cristãos e islâmicos, ainda que ridicularizem tudo o que é caro para
a maioria de nós, os adoradores do Diabo (se é que existem) têm o direito de
praticar a sua religião, desde que não violem nenhuma lei constitucionalmente
válida.
Os indivíduos ou grupos têm a liberdade
de afirmar que uma conspiração judaica ou maçônica está tomando conta do mundo,
ou que o governo federal fez um pacto com o Diabo. Os indivíduos têm a
liberdade, se assim quiserem, de elogiar a vida e a política de indiscutíveis
assassinos de massa como Adolf Hitler, Josef Stalin e Mao Zedong. Até as
opiniões detestáveis têm o direito de ser ouvidas.
Tom Clark, procurador geral da
República e, portanto, o principal responsável pelo cumprimento das leis nos
Estados Unidos, ofereceu em 1948 a seguinte sugestão: Aqueles que não acreditam
na ideologia dos Estados Unidos não devem ter permissão de permanecer nos
Estados Unidos. Mas, se há uma ideologia primordial e característica dos
Estados Unidos é que não há ideologias obrigatórias ou proibidas.
Em seu famoso livrinho On liberty, o
filósofo inglês John Stuart Mill afirmava que silenciar uma opinião é um mal
peculiar. Se a opinião é correta, somos roubados da oportunidade de trocar o
erro pela verdade; e, se está errada, somos privados de uma compreensão mais
profunda da verdade em sua colisão com o erro. Se conhecemos apenas o nosso
lado da argumentação, mal sabemos sequer esse pouco; ele se torna desgastado,
logo aprendido de cor, não testado, uma verdade pálida e sem vida.
Em questões de direito penal, a
Declaração de Direitos reconhece a tentação em que podem cair a polícia, os
promotores e o Judiciário, no sentido de intimidar as testemunhas e apressar a
punição. O sistema de justiça criminal é falível: pessoas inocentes podem ser
punidas por crimes que não cometeram; os governos são perfeitamente capazes de
forjar acusações falsas contra aqueles que, por razões que nada têm a ver com o
suposto crime, não lhes agradam.
As novas idéias, a invenção e a
criatividade em geral sempre estão na vanguarda da promoção de um tipo de
liberdade - um desvencilhar-se das restrições claudicantes. A liberdade é um
pré-requisito para continuar a delicada experiência da ciência - tendo sido uma
das razões pelas quais a União Soviética não pôde continuar sendo um Estado
totalitário e tecnologicamente competitivo. Ao mesmo tempo, a ciência - ou
melhor, a sua delicada mistura de abertura e ceticismo, e o seu estímulo à
diversidade e ao debate - é um pré-requisito para continuar a delicada
experiência da liberdade numa sociedade industrial e altamente tecnológica.
Uma vez questionada a insistência
religiosa na visão predominante de que a Terra estava no centro do Universo,
por que se deveriam aceitar as afirmativas repetidas e conflitantes dos líderes
religiosos no sentido de que Deus enviou reis para nos governar? No século
XVII, era fácil enfurecer o júri a respeito desta impiedade ou daquela heresia.
Eles estavam dispostos a torturar as pessoas até a morte em nome de suas
crenças. No final do século XVIII, já não tinham tanta certeza.
A Declaração de Direitos desatrelou a
religião do Estado, em parte porque muitas religiões estavam impregnadas de um
espírito absolutista - cada uma convencida de que só ela tinha o monopólio da
verdade e, assim, ansiosa para que o Estado impusesse essa verdade aos outros.
Muitas vezes, os líderes e os praticantes das religiões absolutistas eram
incapazes de perceber qualquer meio-termo ou de reconhecer que a verdade
poderia se apoiar em doutrinas aparentemente contraditórias e abraçá-las.
Os idealizadores da Declaração de
Direitos tinham diante dos olhos o exemplo da Inglaterra, onde o crime
eclesiástico da heresia e o crime secular da traição haviam se tornado quase
indistinguíveis. Muitos dos primeiros colonos vieram para os Estados Unidos
fugindo da perseguição religiosa, embora alguns deles ficassem bastante
contentes em perseguir outras pessoas por causa de suas crenças.
Os fundadores de nossa nação
reconheceram que uma relação estreita entre o governo e qualquer uma das
religiões conflitantes seria fatal para a liberdade - e prejudicial à religião.
O juiz Black em 1962 descreveu a cláusula da Igreja oficial na primeira emenda
da seguinte maneira: O seu objetivo primeiro e mais imediato se baseava na
crença de que a união do governo e da religião tende a destruir o governo e a
degradar a religião.
Além do mais, a separação dos poderes
também funciona nesse ponto. Cada seita e culto, como observou certa vez Walter
Savage Landor, é um controle moral exercido sobre os outros: A competição é tão
saudável na religião como no comércio. Mas o preço é elevado; essa competição é
um obstáculo a que grupos religiosos, agindo em harmonia, tratem do bem comum.
Ora, não adianta ter esses direitos,
se não os usamos - o direito à liberdade de expressão quando ninguém contradiz
o governo, à liberdade da imprensa quando ninguém está disposto a fazer as
perguntas difíceis, o direito de reunião quando não há protestos, o sufrágio
universal quando menos da metade do eleitorado vota, a separação da Igreja e do
Estado quando o muro entre eles não passa por uma manutenção regular. Pelo
desuso, eles podem se tornar nada mais que objetos votivos, palavreado
patriótico. Direitos e liberdades: use-os ou perca-os.
Devido à previsão dos idealizadores
da Declaração de Direitos - e ainda mais a todos aqueles que, com risco pessoal
considerável, insistiram em exercer esses direitos -, é difícil agora prender a
liberdade de expressão numa garrafa. Os comitês das bibliotecas escolares, o
serviço de imigração, a polícia, o FBI - ou o político ambicioso à cata de
votos - podem tentar reprimi-la de tempos em tempos, porém mais cedo ou mais
tarde a rolha explode.
A Constituição é afinal a lei da
nação, os funcionários públicos juraram preservá-la, e os ativistas e os tribunais
de vez em quando impedem o fogo... Entretanto, devido a padrões educacionais
mais baixos, competência intelectual em declínio, gosto diminuído pelo debate
substantivo e sanções sociais contra o ceticismo, as nossas liberdades podem
sofrer um processo lento de erosão e os nossos direitos podem ser subvertidos.
Os fundadores compreenderam tudo isso
muito bem: O momento de estabelecer legalmente todos os direitos essenciais é
quando os nossos governantes são honestos e nós mesmos estamos unidos, disse Thomas
Jefferson. Conhecer o valor da liberdade de expressão e das outras liberdades
garantidas pela Declaração de Direitos, saber o que acontece quando não temos
esses direitos e aprender a exercê-los e protegê-los deveria ser um
pré-requisito essencial para ser cidadão norte-americano ou, na verdade,
cidadão de qualquer nação, ainda mais se esses direitos continuam
desprotegidos.
Se não podemos pensar por nós mesmos,
se não estamos dispostos a questionar a autoridade, somos apenas massa de
manobra nas mãos daqueles que detêm o poder. Mas, se os cidadãos são educados e
formam as suas próprias opiniões, aqueles que detêm o poder trabalham para nós.
Em todo país, deveríamos ensinar às
nossas crianças o método científico e as razões para uma Declaração de Direitos.
No mundo assombrado por demônios que habitamos em virtude de seres humanos,
talvez seja apenas isso o que se interpõe entre nós e a escuridão circundante.
Finalizando: O texto acima foi
condensado do livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, 1995, de Carl Sagan.
Este último capítulo foi escrito pela sua esposa Ann Druyan.
Nunca pus os pés nos Estados Unidos,
mas admiro esta nação pela democracia, pela sua pujança tecnológica, pela
meritocracia e principalmente porque, seus valores estão enraizados nos
conceitos maçônicos de seus fundadores.
E o nosso Brasil? Qual o grau de
valores ideológicos, intelectuais e morais dos dois últimos presidentes? Qual o
seu passado? Pobre Brasil, pátria educadora. Não me procurem no dia 13 de março
pois não estarei em casa.
João Ivo Girardi é Maçom Originalmente
publicado no diário virtual JB News 1975, editado por Jerônimo Borges.