Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Carlos Fernando dos Santos Lima
Agora que já foi sepultada a
famigerada MP 703, que distorcia enormemente a lei anticorrupção, movimenta-se
novamente o Governo Federal para alterar a lei nº 12.846/2013. Infelizmente
percebe-se pelo discurso das autoridades do poder executivo e legislativo a
imperfeita noção dos objetivos dos acordos de leniência previstos nessa
legislação.
O que se percebe, principalmente, é
que há enorme confusão conceitual sobre qual clemência, perdão ou benefício
pode ser alcançado por empresa que celebre acordo de leniência com o Poder
Público. A questão pode e deve ser respondida observando-se o fundamento legal
desse acordo.
Tanto em sua sede concorrencial (Lei
12.529/2011), quando em matéria de combate à corrupção (Lei 12.846/2013), o que
se transaciona em acordos de leniência são as sanções previstas nesses
diplomas, principalmente a proibição de contratar ou inidoneidade, e o valor
das multas ali previstas.
A questão da reparação do dano,
observe-se, passa ao largo desses diplomas legais, pois essas leis não tem por
objetivo alcançar diretamente esse efeito, mas apenas o de romper o vínculo de
silêncio entre as empresas cartelizadas, na primeira lei, ou o silêncio entre
corruptor e corrompido, ou entre corruptores, na segunda.
Que a nova lei resgate o sentido de
combate à corrupção e não seja apenas um "Refis" para empresas
corruptoras
Para nosso interesse, em relação ao
instituto da leniência na Lei Anticorrupção, as menções ao ressarcimento
resumem-se ao Art. 6º § 3º - a aplicação das sanções previstas neste artigo não
exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado
e Art. 16º § 3º - o acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da
obrigação de reparar integralmente o dano causado".
Não poderia a lei, como não o fez,
abrir mão do ressarcimento integral do dano, mesmo porque se trata de matéria
indisponível por determinação constitucional. O acordo, portanto, não implica
em qualquer quitação do dano, seja este de material ou moral. Mas o que é mais
importante, a lei não exige que o acordo de leniência trate do ressarcimento.
E por qual motivo esses acordos
deixaram de fora um assunto tão importante? A resposta, obviamente, encontra-se
na própria definição legal do objetivo do instituto da leniência. Esses acordos
visam quebrar a regra de silêncio entre corruptor e corrompido, ou entre
diversos corruptores, e produzir provas desses atos de corrupção. Mas não
somente isso, a Lei Anticorrupção almeja produzir esse resultado da forma mais
rápida possível.
Nesse sentido é o expresso texto da
lei, Art. 16º - a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá
celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática
dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e
o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: 1 - a
identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e 2 - a
obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob
apuração.
Assim fica claro que a discussão
sobre dano em acordos de leniência não somente lhe é estranha, mas
principalmente extemporânea, pois essa discussão somente se pode dar após a
produção das provas apresentadas pela leniência, e outras dela decorrentes, e
não concomitantemente, como alguns pretendem.
Impossível, portanto, salvo em casos
de menor envergadura e com danos facilmente delimitáveis, inverter a lógica do
acordo. Assim, o correto é, primeiro o acordo, depois as provas, em seguida
novas investigações e por fim, o ressarcimento.
Além disso, em casos da espécie, há
solidariedade entre os diversos envolvidos no dano. Qualquer conceito de
reparação do dano também deve levar isso em conta. Ideal seria prever na nova
lei um benefício de ordem para a empresa que celebrar a leniência, ou seja,
ficaria ela no final da fila dos devedores e somente após esgotado o patrimônio
dos demais, poderia ela vir a ser executada pela diferença.
E quanto aos acordos de leniência
celebrados pelo Ministério Público Federal? Penso que a solução aqui é a mesma,
agravado ainda pela necessidade, em muitos casos, de se manter sigilosa a
investigação, inclusive para outros órgãos de controle, como o TCU ou a antiga
CGU.
Isto porque a lei foi pensada para
corrupção de funcionários públicos e não de agentes políticos. Entretanto, como
a Operação Lava-Jato vem demonstrando, a responsabilidade última dos grandes
casos de corrupção encontra-se no nível das altas autoridades dos três poderes.
A única resposta eficaz para esse
problema é acordo próprio e exclusivo do Ministério Público, pois não seria
producente abrir o sigilo de investigações para órgãos que podem estar
politicamente envolvidos na situação investigada.
Nesse ponto, faz sentido a ideia de
que qualquer valor de ressarcimento previsto no acordo seja somente um
adiantamento do valor. O acordo do Ministério Público Federal somente poderia
ser relativo às sanções que lhe incumbe buscar em juízo, sejam as penais
(perdão para os middlemen que aderirem ao acordo, em analogia com a lei do Cade
e a Lei de Combate ao Crime Organizado), sejam as previstas na legislação de
improbidade administrativa.
Entretanto, se não é possível falar
no momento da celebração do acordo em valor a ser ressarcido, pois ainda
ausente qualquer parâmetro objetivo do dano, bem como inconveniente se socorrer
dos órgãos técnicos externos para a sua delimitação, seria uma oportunidade
perdida não "arbitrar" um valor ressarcimento ainda nesse momento.
Esse arbitramento, como objetivo
secundário que é, submete-se aos objetivos principais do acordo, pois qualquer
adiantamento em fase inicial, mas com provas que possam levar a mais completa
descoberta dos atos lesivos e de seus responsáveis, é melhor que investigações
tateando no escuro na busca de provas, sem qualquer ressarcimento efetivo, como
a história judicial brasileira é plena.
Esperamos que a nova legislação a ser
editada resgate o sentido de uma lei de combate à corrupção, ou seja, de
auxiliar a identificação de corruptos, não se tornando apenas um
"Refis" para empresas corruptoras.
Carlos Fernando dos Santos Lima é
Procurador Regional da República e membro da Força-Tarefa da Lava-Jato.
Originalmente publicado no Valor Econômico em 12 de agosto de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário