Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Carlos I. S. Azambuja
O texto abaixo foi escrito
por Samir Amin (em árabe, سمير أمين) (Cairo; 3 de setembro de 1931)
é um economista egípcio neo-marxista,
um dos mais importantes de sua geração. Realizou seus estudos sobre política, estatística e economia em Paris.
Atualmente reside em Dakar (Senegal),
e foi publicado no livro “História do Marxismo – O Marxismo Hoje”, de Eric
Hobsbawn.
________________________
________________________
A vocação revolucionária da classe
operária constitui indubitavelmente o tema de partida essencial do marxismo. O
próprio Marx definiu sua contribuição dizendo que ela reside não na descoberta
das classes sociais, mas na demonstração de que, na era do capitalismo, a luta
entre as classes deve levar à abolição delas, ao comunismo. Isso implica que se
reconheça: a) o caráter essencial da relação capital-trabalho, como relação
determinante da sociedade moderna; b) o caráter expansionista dessa relação,
que envolve inexoravelmente o mundo inteiro; c) a impossibilidade de uma
conciliação entre os dois pólos – burgueses e proletários – e o caráter
ilusório e temporário de qualquer compromisso entre eles; d) a consciência
necessária e crescente do desfecho comunista por parte do proletariado; e) a
expansão mundial dessa consciência, que está na base do apelo de Marx:
“proletários de todo o mundo, uni-vos”. A convicção otimista de Marx não
implica a certeza “religiosa” do desfecho comunista: se as condições que aqui
enumeramos sumariamente não se verificarem, o capitalismo levará a humanidade à
autodestruição. A opção é entre comunismo e barbárie.
O materialismo histórico não pode ser
reduzido a um “economicismo”, mais ou menos vulgar, mecanicista, nem à visão de
uma única realidade social, a das classes, com a conseqüente negação de
qualquer outra realidade. A primeira dessas reduções é muito antiga, quase
contemporânea aos escritos de Marx. Inserindo-se na tradição do pensamento
iluminista, ela assimila a sociedade à natureza, e identifica o caráter
objetivo das leis sociais com o das leis naturais.
Os condicionamentos econômicos, por
conseguinte, operariam do mesmo modo que os natur, desde a Dialética da
Natureza, de Engels, passando pelo economicismo de Kaustky e até
o diamat (Obs: materialismo dialético) soviético. Essa linha leva –
como Berstein havia compreendido – ao reformismo, na medida em que o socialismo
se apresenta como o desfecho inevitável, ao qual se chegaria até mesmo sem se
saber. No limite, portanto, a condição indicada, relativa à consciência, perde
sua significação específica própria: ou não é mais realmente indispensável, ou
– e as coisas não mudam – desenvolve-se de modo fatal. Do mesmo modo, o
socialismo - nessa perspectiva – é impossível antes que o capitalismo tenha
completado sua própria obra, desenvolvendo as forças produtivas e
proletarizando a sociedade.
A segunda redução é não menos antiga;
constitui, aliás, uma tendência profunda do sistema marxista. A expansão das relações
capitalistas em escala mundial deveria cancelar progressivamente todas as
outras realidades sociais: nações, comunidades religiosas e culturais, tribos,
etnias, castas, perderam sua identidade, para dar lugar a uma única
contradição, a que opõe burgueses e proletários. Com efeito, precisamente a
história da expansão mundial do capitalismo mostrou como essa formação
econômico-social, em vez de tornar homogêneas todas as sociedades e reduzir o
mundo inteiro à dicotomia fundamental entre burgueses e proletários, na verdade
reproduziu e acentuou – ao desenvolver-se com base numa divisão internacional
do trabalho – a heterogeneidade e a hierarquia das nações.
Já Lenin, ao tomar conhecimento da
cumplicidade dos partidos socialistas na ação de pilhagem do mundo colonial,
destacava no Imperialismo os efeitos políticos desse tipo de
expansão. Decerto, seria de perguntar se o capitalismo – desde a origem de sua
formação e expansão – não foi sempre um sistema mundial fundado em posições
assimétricas entre as regiões centrais e as regiões integradas para serem
transformados em periferia do sistema.
O breve momento da hegemonia
britânica – dos anos 20 aos anos 70 do Século XIX – industrialista e
livre-cambista, no curso da qual se formaram novos centros nacionais europeus à
imagem da Inglaterra, pôde levar a supor que existisse que existisse essa
potencialidade homogeneizadora na expansão da relação social capitalista. E não
se deve esquecer que Marx viveu precisamente em tal época. De qualquer modo, a
análise leniniana do imperialismo não se revelou capaz de cancelar os efeitos
políticos denunciados: o reformismo e a atitude pró-imperialista não podiam ser
facilmente removidos da consciência operária das metrópoles. Aliás, os próprios
partidos da Terceira Internacional terminaram por se revelar progressivamente
condicionados pelas realidades sociais predominantes.
Lenin, contudo, deixara claro como a
transição pra o socialismo não deveria mais ser concebida como uma série de
revoluções socialistas nos centros metropolitanos, mas como uma série de
rupturas dos “elos mais fracos da cadeia”. Isso implicava uma série
de questões: a) sobre a função dos camponeses, que constituíam a maioria nas
periferias dominadas; b) sobre as possibilidades de “a classe operária”,
numericamente fraca em tais países, dirigir essa revolução; c) sobre o modo de
combater as aspirações das novas burguesias em formação nas áreas periféricas;
d) sobre a possível integração das realidades nacionais e de suas
reivindicações específicas no esquema revolucionário. Não eram, decerto,
questões novas: as classes camponesas tinham colocado não poucos problemas, já
no âmbito da Europa oitocentista, da França e da Alemanha à Itália e aquelas
nacionalidades oprimidas pelas “prisões dos povos”, que eram os impérios russo,
austríaco e otomano. Mas via de regra, havia uma inclinação no sentido de
minimizar o problema:os camponeses – reserva da hegemonia burguesa
anti-operária – estavam destinados ao desaparecimento precisamente em função do
desenvolvimento das relações capitalistas no campo.
Mas, em seguida, surgiram novas
dissensões: a questão já não era mais européia. Os camponeses e as nações
oprimidas se apresentam se apresentam como um problema essencial do mundo
colonial e semicolonial; não mais se trata de esperar seu desaparecimento em
conseqüência do desenvolvimento capitalista: o marxismo tem que se tornar uma
força de transformação das sociedades coloniais. O problema está longe de ter
sido resolvido, tanto em termos teóricos como na prática política. Em que
medida a vocação revolucionária da classe operária subsiste no coração do
sistema?
E em que medida pode ser estabelecida
nas áreas periféricas? De que modo se articula com as aspirações dos camponeses
e das burguesias daqueles países? O debate sobre a expansão do
capitalismo, naturalmente está implícito: que capitalismo se desenvolve
naqueles países, que depois da Segunda Guerra Mundial são chamados de “Terceiro
Mundo”? Por outro lado, no momento em que o marxismo deixa de ser europeu para
se tornar um fenômeno mundial, toda uma série de outros problemas termina por
se colocar, na medida em que o próprio marxismo não pode deixar de ser
profundamente marcado pela sociedade na qual surgiu.
Desse modo, a discussão, embora tenha
como base as firmas de organização econômica da exploração capitalista em
escala mundial, deve abordar também os modos de exploração pré-capitalistas
não-europeus, as culturas e as grandes religiões não-européias, etc. Trata-se
de uma discussão que mesmo tendo atrás de si uma base cultural que vai do Marx
dos Grundrisse aos debates sobre o modo de produção asiático,
coloca-se, contudo, em termos essencialmente novos, dado o confronto direto e
imediato com realidades novas.
O desenvolvimento do capitalismo na
Ásia e na África, no último século, apresenta características específicas, que
fazem dele algo diverso de uma repetição retardada do desenvolvimento ocorrido
no Ocidente. A indústria que é introduzida nesses continentes, numa época agora
dominada pelos monopólios, é, desde o início, moderna; ela utiliza tecnologias
que criam pouco emprego e, sobretudo, que não apresentam analogias com a força
de trabalho com a Europa industrial do século passado.
A classe operária é constituída,
naqueles países por trabalhadores não qualificados, ligados a cadeias de
montagem de elevada produtividade. É, portanto, pouco numerosa, recrutada numa
enorme massa de camponeses pobres, sem terra, amontoados nas miseráveis
periferias urbanas. A alta produtividade do trabalho permite, com freqüência, a
garantia de um nível de vida que, se é miserável em relação aos dos operários
dos países desenvolvidos, oferece vantagens bastante sensíveis (antes de mais
nada, uma relativa segurança no emprego) em nível local.
A formação de uma classe operária,
nesses países, está sempre em atraso com relação à de outras classes criadas
também pelo desenvolvimento do capitalismo moderno; por um lado, a pequena
burguesia de técnicos e empregados e a burguesia rural de médios e pequenos
proprietários, e, por outro lado, as massas pobres, mas não proletarizadas, dos
camponeses sem terra e dos desempregados. A burguesia local, ao contrário – não
menos do que a classe operária – ressente-se negativamente do domínio dos
monopólios em escala mundial.
Essa peculiar situação dos países
afro-asiáticos se revela indubitavelmente como algo explosivo. A contradição
que a caracteriza é, por outro lado, evidente: pior um lado, a classe operária
não pode desenvolver sua própria consciência socialista, a não ser sob a condição
de criar sua organização de classe autônoma, com o objetivo de travar até o fim
sua luta anticapitalista; por outro, a revolução não pode certamente ser obra
apenas da classe operária.
Mas, no âmbito de uma ampla aliança
com os camponeses, e até mesmo com a burguesia, será que a classe operária é
capaz e dirigir a “frente única” e de desenvolver um projeto comunista próprio?
O leninismo – assim como o maoísmo, que pretende ser seu desenvolvimento –
afirma que isso é possível, e até mesmo, que constitui o fenômeno peculiar da
transição ao socialismo em nosso tempo.
Assim, a antiga palavra de ordem do
Manifesto é substituída por uma nova: “Proletários e povos oprimidos de todos
os países, unam-se!”. A expansão mundial do marxismo, a convicção de que
seu centro de gravidade transferiu-se para o mundo revolucionário do
subdesenvolvimento, transparecem por trás dessa teoria da vocação socialista
da classe operária em escala mundial em nosso tempo. Resta ver de que
modo o marxismo respondeu, nos planos teóricos e práticos, aos problemas
levantados pelo leninismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário