Leonel Brizola
Por Carlos I. S. Azambuja
O texto abaixo foi publicado no livro “O
Fantasma da Revolução Brasileira”, escrito por Marcelo Ridenti, professor
da UNESP, formado em Ciências Sociais e Direito, e doutorado em Sociologia.
Autor de outros 23 livros, segundo o Wikipedia.
“O comunismo é o fascismo dos pobres.”
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Os grupos e lideranças de esquerda, depois de 1964, parecem ter sido marcados
por um processo que poderíamos chamar de “ilusão da permanência representativa”.
Quaisquer que sejam as formas de representação – em partidos, sindicatos e
outros movimentos institucionais ou não, e até mesmo a própria representação no
Estado como síntese da sociedade civil –, elas tendem a trazer em si a ilusão
de sua própria perenidade enquanto formas de representação, como se a
representação social do presente fosse eterna, e a realidade não estivesse em
um movimento contraditório de transformação. O sindicato, o partido e o próprio
Estado que se supõem imbuídos de um papel intrínseco e imutável de
representação podem estar, por vezes, sem se aperceberem, desvinculando-se do
movimento real dos representados. Estes podem não mais se identificar com os
seus supostos representantes, deixar de reconhecê-los como tais. Por exemplo:
em o 18 Brumário de Luis Bonaparte, Marx indica a trajetória do
partido da ordem, mostrando como, de representante por excelência da burguesia
francesa no Parlamento por volta de 1850, o partido enredou-se na trama
política, perdendo, sem perceber, tal representação. Apoiado em bases falsas,
crente na posse de uma representação que já não exercia, o Partido da Ordem foi
varrido pelo golpe napoleônico capaz de garantir a ordem para o progresso de
que a burguesia francesa tanto necessitava. Esta abria mão do exercício direto do
Poder, delegando-o a Luis Bonaparte e ao Exército, os quais “ao protegerem o
seu poder material, geram novamente o seu poder político (da burguesia)”.
Na sociedade brasileira, no início da
década de 1960, líderes populistas nacionalistas, como JOÃO GOULART e LEONEL
BRIZOLA, movimentos sindicais, as Ligas Camponesas, o próprio PCB e outras
entidades eram, de alguma forma, representantes das massas trabalhadoras. O
golpe foi dado quando tal representação ameaçou sair dos marcos da ordem
capitalista, com a tendência crescente das massas irem superando seus antigos
representantes, para constituírem propriamente uma classe. Os representantes do
“povo” no pré-64 não se revelaram capazes de dar um salto na qualidade de sua
representação, conduzindo uma resistência ao golpe, que poderia ter alterado a
História. Jango e assessores civis e militares, Brizola e nacionalistas,
trabalhistas e comunistas, porque não pudessem ou porque não quisessem, não
tentaram o salto de representantes das “massas”, do “povo”, para representantes
das classes trabalhadoras; isso teria exigido a resistência imediata, que não
houve, para surpresa dos golpistas.
É irresistível a tentação de usar,
para caracterizar a derrota de 1964, as palavras de Marx, em O Dezoito
Brumário, sobre o Partido Social Democrata da França, em meados de 1849, cujos
representantes no Parlamento haviam sido eleitos com o voto operário e
pequeno-burguês:
“Os representantes, por sua vez,
ludibriaram a pequena burguesia, pelo fato de que os seus pretensos aliados do
Exército não apareceram em lugar nenhum. Finalmente, em vez de ganhar forças
com o apoio do proletariado, o partido democrático infectara o proletariado com
sua própria fraqueza e, como costuma acontecer com os grandes feitos dos
democratas, os dirigentes tiveram a satisfação de poder acusar o povo de
deserção, e o povo a satisfação de acusar seus dirigentes de o terem iludido”.
Essa passagem irônica evidencia
também que não cabe acentuar, isoladamente, nem a atuação dos representantes
partidários, nem a ação dos representados: elas são tomadas em conjunto, no
movimento contraditório do social, que também impõe limites objetivos às ações
dos homens.
As raízes da derrota política não
devem ser buscadas só nos “erros” dos partidos, nem apenas na ação, ou falta de
ação, dos que nele se representam. Se isso for correto, a derrota de 1964 não
pode ser atribuída somente à ação das esquerdas, nacionalistas e comunistas, ou
apenas à ”passividade do povo”. A derrota foi de um projeto político de
representação que envolveu e iludiu a todos, as massas populares e as
esquerdas, representados e representantes, que foram tragados, no mesmo
processo, pela roda-viva da História, cujo devir também dependia da ação das
classes dominantes e da dinâmica objetiva do capitalismo brasileiro.
O sentimento social pela derrota do
projeto político de representação popular, em vigor até 1964, foi poeticamente
tratado, por exemplo, na letra da Roda Viva, de Chico Buarque de
Holanda, de 1967. A canção expressa o espanto, a impotência e o desespero de
ver o tempo passar, sem que a História trilhasse os rumos desejados pelas “forças
populares”, cujas ilusões passageiras foram levadas pela “roda viva” que
destruiu “o santo, a viola, a roseira”, cultivadas em vão.
Tem dias que a gente se sente/ como
quem partiu ou morreu/ a gente estancou de repente/ ou foi o mundo então que
cresceu/ a gente quer ter voz ativa/ no nosso destino mandar/ mas eis que chega
a roda-viva/ e carrega o destino pra lá/ roda mundo, roda gigante/ roda-moinho,
roda pião/ o tempo rodou num instante/ nas voltas do meu coração/ a gente vai
contra a corrente/ até não poder resistir/ na volta do barco é que sente/ o
quanto deixou de cumprir/ faz tempo que a gente cultiva/ a mais linda roseira
que há/ mas eis que chega a roda-viva/ e carrega a roseira pra lá/ a roda da
saia, a mulata/ não quer mais rodar, não senhor/ não posso fazer serenata/ a
roda de samba acabou/ a gente toma a iniciativa/ viola na rua, a cantar/ mas
eis que chega a roda-viva/ e carrega a viola pra lá/ o samba, a viola, a
roseira/ um dia a fogueira queimou/ foi tudo ilusão passageira/ que a brisa
primeira levou/ no peito a saudade cativa/ faz força pro tempo parar/ mas eis
que chega a roda-viva/e carrega a saudade pra lá.
Se, contrariando as análises da
esquerda armada, não houve uma situação revolucionária propriamente dita na
sociedade brasileira nos anos 60 e 70, talvez tenha-se chegado perto de
transformações, mesmo que dentro da ordem, no período imediatamente anterior ao
golpe de 1964, período que iria expandir suas conseqüências políticas (e também
culturais, econômicas e ideológicas) por uma década, pelo menos. Representações
das massas populares, institucionalizadas ou semi-institucionalizadas até 1964,
não só o PCB, o CGT e UNE, como também o movimento nacionalista ligado a
Brizola e ao próprio João Goulart, os movimentos dos subalternos das Forças
Armadas, os sindicatos, com diretorias “progressistas”, as lideranças
políticas, estudantis e sindicais, todos viram-se desprovidos de canais
institucionais de atuação após o golpe.
A representação dessas entidades e
lideranças, sobretudo as legalizadas, estava fundamentalmente ligada à
organização institucional do Estado populista. Dado o golpe, uma vez perdidos
os canais institucionais de representação, tratava-se de encontrar outros
caminhos, para continuar representando a vontade dos representados. A
representatividade daquelas entidades estava vinculada ao fetichismo da
representação popular no Estado democrático, em vigor de 1946 a 1964. Com
a queda do regime populista, desmanchou-se a trama representativa na qual se
assentavam. Como elas poderiam manter alguma representatividade, sem qualquer
participação no Poder do Estado, que era a pedra de toque de todo o processo de
representação das massas populares nos anos anteriores ao golpe?
Muitos contagiaram-se pela “ilusão da
permanência representativa”, depois de 1964. Então, a conjuntura era outra, o
regime democrático populista desaparecera, perdera-se a oportunidade da
resistência imediata ao golpe, sindicatos e outras entidades sofriam
intervenção, oposicionistas eram perseguidos, os partidos tradicionais
agonizavam, mas a força potencial do movimento social dos movimentos sociais
anteriores ao golpe alimentava ilusões. Alguns insistiram, anacronicamente, na
manutenção do projeto político em vigor no período populista, contudo sem apoio
e bases de sustentação institucionais, eles veriam minguar, em pouco tempo,
quase por completo, a sua representação. Foi o caso do PCB, que passou a sofrer
sangrias contínuas, de militantes isolados e de cisões políticas organizadas,
todos insatisfeitos com a linha adotada pela maioria da direção
partidária.
Outro exemplo de ilusão com a linha
de representatividade, conseguida até 1964, foram as investidas de militares
nacionalistas ligadas ao brizolismo, que pensavam contar com força
representativa suficiente para efetivar, de imediato, uma iniciativa
insurrecional armada. Os nacionalistas revolucionários iludiam-se duplamente: com
a sua própria inserção política, isto é, com a permanência da sua
representatividade, e com o tipo de representação que antes exerciam, uma
representação política dentro da ordem institucional, que não podia ser
transformada automaticamente, sem mediações, numa representação contra a nova
ordem, que já se consolidava. Iludidos, os nacionalistas chegaram ao ponto de
pensar que, dado o sinal, vários quartéis e as massas trabalhadoras adeririam a
uma insurreição.
O próprio Brizola só se apercebeu da
ilusão de sua permanência representativa após o desbaratamento da guerrilha de
Caparaó, em 1967. Muitos nacionalistas, principalmente ex-militares
subalternos, não acompanharam a decisão de Brizola, integrando-se a diversas
organizações armadas de esquerda que procuravam colocar, em novas bases, a
questão da representação. O partido revolucionário, ou a própria guerrilha,
independentemente das diferenças da visão de cada grupo, seria o elo de
representação armada das classes exploradas contra seu outro, corporificado na
ditadura militar.
No percurso para realizar o plano
traçado da guerrilha rural, os grupos armados urbanos envolveram-se
umbilicalmente com os principais movimentos sociais entre 1965 e 1968. Todos
eles viveram, de diversas formas dando respostas topicamente diferenciadas, a
tensão entre ”massismo” e “militarismo”, isto é, entre a realização de um
trabalho político mais sólido junto às massas, preparando-se imediatamente para
a insurreição, e a exigência de ações armadas imediatas, preparatórias para a
deflagração da guerrilha rural. Nesse processo,os grupos guerrilheiros ganharam
a adesão de lideranças dos movimentos sociais do período, operárias, sindicais
e, sobretudo, estudantis. Não tardaria a se expressar, também, a ilusão da
permanência representativa dessas lideranças: elas perdiam representatividade
ao se afastarem dos meios sociais em que atuavam, entrando para a
clandestinidade (por decisão própria ou por imposição da repressão policial) a
fim de integrar-se profissionalmente aos grupos que faziam ações guerrilheiras.
Mudava qualitativamente o tipo de
representação proposta quando as lideranças dos movimentos de massas
trocavam-nos pela guerrilha: só uma minoria dos participantes das lutas de
massas, contra a ditadura e a modernização conservadora que ela impunha, viriam
a aderir às ações armadas, enquanto a maioria se desmobilizava politicamente.
Foi esse o caso do movimento estudantil, do movimento das oposições sindicais,
especialmente dos operários de Osasco.
Ao contrário do que imaginavam as
organizações armadas de esquerda, não se estava diante do momento-limite de uma
situação revolucionária, em que formas alternativas de representação destroem a
organização representativa institucional vigente. Longe disso, após 1964 a contra-revolução
estabeleceu-se, houve reforço das instituições capitalistas, inclusive do
próprio Estado, depuradas de qualquer presença significativa de representantes
dos despossuídos.
A contra-revolução criou um padrão de
representação política, em vigor de 1946 a 1964, e tratou de criar organismos
representativos fundamentais para a estabilização e a “legitimização” da nova
ordem. Era de esperar uma reação a ela por parte daqueles que se propunham
representantes dos trabalhadores. Hoje se sabe que o tipo de representação
proposto, nos anos 60, como alternativa à representação “populista”, a saber, a
de guerra de guerrilhas, não foi mais feliz que aquela para expressar a
identidade da classe trabalhadora. Ambas, nas suas várias vertentes, não
passaram de esboço de representação de classe, foram apenas “vontade de
representação”.
Todo o o período entre 1964 e 1974 –
especialmente os anos entre 1964 e 1968, quando os movimentos de massas ai da
tinham certa força e organização – foi marcado pela ambigüidade dessas duas
facetas: reconstruir a representação perdida como golpe de 1964 e criar uma
representação de novo tipo, o que corresponde às duas principais molas
propulsoras, às bases políticas reais para a ação das esquerdas: os resquícios
dos amplos movimentos sociais anteriores ao golpe de 1964 e criar uma
representação de novo tipo. O que corresponde às duas principais molas
propulsoras, às bases políticas reais para a ação das esquerdas: os resquícios
dos amplos movimentos sociais anteriores ao golpe de 1964, de militares
subalternos, de trabalhadores urbanos e rurais, estudantes, sindicalistas,
parcelas das camadas médias intelectualizadas, incluindo setores de grupos
políticos que se pretendiam representantes populares no pré-64, como PCB, AP,
POLOP, brizolistas, etc. e o impulso imediato dos movimentos sociais, mais
restritos, de 1967 e 1968 (operários e sindicalistas urbanos, mas, sobretudo,
de estudantes e camadas intelectualizadas). Contudo, a partir de 1969,
exauriam-se as fontes alimentadoras das esquerdas: desapareciam as
sobrevivências da representação política até 1964 e esgotavam-se os movimentos
sociais de 1967/1968, quer pela repressão policial generalizada, quer pela
recuperação econômica com o ‘milagre brasileiro”, quer pela manipulação
ideológica desses e de outros fatores pelo regime civil-militar; quer pela atuação
política dos movimentos sociais e das próprias esquerdas em geral e, em
particular, das armadas. Estas caminhavam para a extinção, ao insistirem
enfrentar abertamente a repressão, sem capacidade de reciclar seus quadros e
suas bases, numa conjuntura de refluxo dos movimentos sociais. Ao invés de
ganharem representatividade, as organizações clandestinas iam perdendo aquela
com que contavam, marginalizando-se socialmente, entrando numa dinâmica ambígua
de sobrevivência política e de auto-destruição no rumo certo do desaparecimento.
Foi isso que aconteceu.
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Observação: o autor usou 57 vezes a
palavrarepresentação ou palavras derivadas, comorepresentados, representativos,
etc,
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.