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Por Sérgio Moro
Espera-se que a independência da
Justiça não seja desprezada. As Cortes de Justiça precisam ser independentes.
Necessário assegurar que os julgamentos estejam vinculados apenas às leis e às
provas e que sejam insensíveis a interesses especiais ou à influência dos
poderosos.
A independência dos juízes tem uma
longa história. Na Idade Média, os juízes do rei se impuseram, inicialmente, às
Cortes locais, estas mais suscetíveis às influências indevidas nos julgamentos.
Sucessivamente, os juízes se tornaram independentes do próprio rei e,
posteriormente, daqueles que o substituíram no exercício do poder central, o
executivo ou o parlamento.
Nos Estados Unidos, a independência
judicial foi definitivamente afirmada ainda no ano de 1805 com o fracasso da
tentativa de impeachment do juiz Samuel Chase da Suprema Corte. O impeachment
foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado no Senado. Tratava-se
de tentativa do então presidente Thomas Jefferson, notável por outras
realizações, de obter domínio político sobre a Suprema Corte. O célebre John
Marshall, então juiz presidente da Suprema Corte, afirmou, sobre o episódio,
que o impeachment tinha por base o equivocado entendimento de que a adoção por
um juiz de uma interpretação jurídica contrária à legislatura tornaria-o
suscetível ao impeachment. A recusa do Senado, mesmo pressionado pela
Presidência, em aprovar o impeachment propiciou as bases da tradição de forte
independência das Cortes norte-americanas e que é uma das causas da vitalidade
da democracia e da economia daquele país.
No Brasil, a independência das Cortes
de Justiça é resultado de uma longa construção, trabalho não de um, mas de
muitos.
Seria, porém, injustiça não
reconhecer a importância singular de Rui Barbosa nessa construção.
Rui Barbosa é um dos pais fundadores
da República. Foi o maior jurista e o mais importante advogado brasileiro. De
negativo em sua história, apenas o seu envolvimento na política econômica do
encilhamento, a confirmar o ditado de que bons juristas são péssimos
economistas e vice-versa.
Rui Barbosa assumiu a defesa, no
final do século XIX, do juiz Alcides de Mendonça Lima, do Rio Grande do Sul. O
juiz, ao presidir julgamento pelo júri, recusou-se a aplicar lei estadual que
eliminava o voto secreto dos jurados, colocando estes a mercê das pressões
políticas locais.
O então presidente do Rio Grande do
Sul, Júlio de Castilhos, contrariado, solicitou que fosse apurada a
responsabilidade do “juiz delinquente e faccioso”. O tribunal gaúcho culminou
por condená-lo por crime de abuso de autoridade.
Rui Barbosa levou o caso até o
Supremo Tribunal Federal, através da Revisão Criminal nº 215.
Produziu, então, um dos escritos mais
célebres do Direito brasileiro, “O Jury e a responsabilidade penal dos juízes”,
no qual defendeu a independência dos jurados e dos juízes. Argumentou que um
juiz não poderia ser punido por adotar uma interpretação da lei segundo a sua
livre consciência. Com a sua insuperável retórica, afirmou que a criminalização
da interpretação do Direito, o assim chamado crime de hermenêutica, “fará da
toga a mais humilde das profissões servis”. Argumentou que submeter o julgador
à sanção criminal por conta de suas interpretações representaria a sua
submissão “aos interesses dos poderosos” e substituiria “a consciência pessoal
do magistrado, base de toda a confiança na judicatura”, pelo temor que
“dissolve o homem em escravo”. Ressaltou que não fazia defesa unicamente do
juiz processado, mas da própria independência da magistratura, “alma e nervo da
Liberdade”.
O Supremo Tribunal Federal acolheu o
recurso e reformou a condenação, isso ainda nos primórdios da República, no
distante ano de 1897.
Desde então sepultada entre nós a
criminalização da hermenêutica, passo fundamental na construção de um
Judiciário independente.
Passado mais de um século, o Senado
Federal debruça-se sobre projeto de lei que, a pretexto de regular o crime de
abuso de autoridade, contém dispositivos que, se aprovados, terão o efeito
prático de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação
independente dos juízes.
Causa certa surpresa o momento da
deliberação, quando da divulgação de diversos escândalos de corrupção envolvendo
elevadas autoridades políticas e, portanto, oportunidade na qual nunca se fez
mais necessária a independência da magistratura, para que esta, baseada apenas
na lei e nas provas, possa determinar, de maneira independente e sem a pressão
decorrente de interesses especiais, as responsabilidades dos envolvidos,
separando os culpados dos inocentes.
Ninguém é favorável ao abuso de
autoridade. Mas é necessário que a lei contenha salvaguardas expressas para
prevenir a punição do juiz — e igualmente de outros agentes envolvidos na
aplicação da lei, policiais e promotores — pelo simples fato de agir
contrariamente aos interesses dos poderosos.
A redação atual do projeto, de
autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador Renan
Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que a
interpretação não constituirá crime se for “razoável”, mas ignora que a
condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências
dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável.
Direito, afinal, não admite certezas matemáticas.
Mas não é só. Admite, em seu art. 3º,
que os agentes da lei possam ser processados por abuso de autoridade por ação
exclusiva da suposta vítima, sem a necessidade de filtro pelo Ministério
Público. Na prática, submete policiais, promotores e juízes à vingança privada
proveniente de criminosos poderosos. Se aprovado, é possível que os agentes da
lei gastem a maior parte de seu tempo defendendo-se de ações indevidas por
parte de criminosos contrariados do que no exercício regular de suas funções.
Há outros problemas na lei, como a
criminalização de certas diligências de investigação ou a criminalização da
relação entre agentes públicos e advogados, o que envenenará o cotidiano das Cortes.
Espera-se que uma herança de séculos,
a construção da independência das Cortes de Justiça, não seja desprezada por
nossos representantes eleitos. Compreende-se a angústia do momento com a
divulgação de tantos casos de corrupção. Mas deve-se confiar na atuação da
Justiça, com todas as suas instâncias, para realizar a devida depuração.
Qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida
razoável.
A aprovação de lei que, sem
salvaguardas, terá o efeito prático de criminalizar a hermenêutica e de
intimidar juízes em nada melhorará a atuação da Justiça nessa tarefa. Apenas a
tornará mais suscetível a interesses especiais e que, por serem momentâneos,
são volúveis, já que — e este é um alerta importante — os poderosos de hoje não
necessariamente serão os de amanhã.
Rui Barbosa também foi Senador da
República. É o seu busto que domina o Plenário do Senado. Espera-se que a sua
atuação como um dos fundadores da República e em prol da independência da
magistratura inspire nossos representantes eleitos.
Sérgio Fernando Moro é juiz titular
da 13ª Vara Federal em Curitiba, que cuida da Lava Jato. Originalmente
publicado em O Globo em 25 de abril de 2017.
4 comentários:
Cito apenas um versículo de Provérbios 28.4:
Os que deixam a lei louvam o ímpio; porém os que guardam a lei contendem com eles.
Cito apenas um versículo de Provérbios 28.4:
Os que deixam a lei louvam o ímpio; porém os que guardam a lei contendem com eles.
Ou seja: nada de retrocesso!!!!E se o judiciário não cumprir o papel histórico que lhe cabe neste momento e pelo qual o povo anseia, corremos o risco de ruptura da ordem.Que ouçam os que têm ouvidos e capacidade para faze-lo!
O país apoia o Dr Moro incondicionalmente, em grande maioria.Queremos a lava jato até o fim ou o custo será difícil de ser pesado:O sangue dos brasileiros.
Meu Caro Dr.Sérgio Moro: Está mais do que na cara que o projeto desses bandidos que estão infiltrados nos Poderes Executivo e Legislativo e na própria cúpula do Poder Judiciário é de eliminar os agentes públicos da Justiça,do Ministério Público e da Polícia que levam as suas profissões com dignidade, seriedade e acima de tudo com respeito pela sociedade a quem devem servir. Com o tal crime de abuso de autoridade que inventaram,os juízes independentes e imparciais não terão mais vez devido ao massacre que sofrerão com avalanches de processos criminais contra eles ,que certamente nem conseguirão dar conta de tantos que serão. Considere-se ,ainda,que dinheiro de origem criminosa não faltará para os queixosos contratarem as mais caras bancas de advocacia para processar juízes,promotores e policiais. A pressão será tão grande que esses agentes públicos não mais terão condições de trabalhar e se defender ao mesmo tempo,às suas próprias custas.Haverá uma debandada. Mas certamente
os seus lugares serão ocupados por novos agentes públicos submissos ao poder dominante. Não teremos mais juízes,nem tribunais de verdade. O que teremos é um rebanho de cordeirinhos togados fazendo a vontade dos políticos,sem se "incomodarem".O que deve ficar claro é que será humanamente impossível que os juízes e promotores arranjem tempo e dinheiro para fazer frente à pressão sobre eles que se avizinha.Sérgio A.Oliveira
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