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Por Carlos I. S. Azambuja
PRIMO LEVI era um químico italiano de apenas 24 anos quando foi
capturado pelas forças fascistas italianas e deportado para o campo de
concentração de Auschwitz, a fábrica da morte construída pelo regime nazista
para executar judeus, homossexuais, comunistas e ciganos.
Em 1945, após sua libertação, militares soviéticos encarregaram
Levi e outro prisioneiro, o médico Leonardo De Benedetti, de elaborar um
relatório detalhado sobre as inomináveis condições de saúde dos campos. O
resultado foi o “Relatório sobre Auschwitz”, um testemunho extraordinário e
pioneiro sobre os campos de concentração, e ainda hoje uma peça impressionante
a respeito da prática clínica num lugar de desumanização e extermínio. Detalhes
escabrosos, escatológicos e aviltantes a respeito do cotidiano dos médicos,
enfermeiros e pacientes são apresentados numa prosa sóbria, cristalina e
anti-sentimental.
Publicado em 1946 numa revista científica, o relato inauguraria
o trabalho de PRIMO LEVI como escritor. Nas quatro décadas seguintes, PRIMO
LEVI nunca deixaria de contar a experiência em Auschwitz em diversos textos.
São relatos, depoimentos, cartas e comentários publicados quase até às vésperas
de sua morte, em 1987. Invocam, com o poder do testemunho e a desconcertante
claridade de sua prosa, a agonia de milhões de pessoas que experimentaram o
inferno em um sistema diabolicamente concebido para espoliar do homem tudo o
que ele tem – seu corpo, sua esperança e, por fim, sua própria vida.
A seguir um desses textos, intitulado “Aniversário”, escrito por
ele em 1955:
A dez anos de libertação dos Campos de concentração, é triste e
significativo ter de constatar que, pelo menos na Itália, o tema desses locais
de extermínio, longe de ter ingressado na história, segue no mais completo
esquecimento.
É supérfluo, aqui, recordar os números, que essa foi a mais
gigantesca carnificina da história, a ponto de reduzir quase a zero, por
exemplo, a população judaica de nações inteiras da Europa Oriental. Relembrar
que, se a Alemanha nazista tivesse sido capaz de levar seu plano a termo, a
técnica experimentada em Auschwitz e em outros locais teria sido aplicada a
continentes inteiros.
Atualmente, é indelicado falar dos Campos de concentração.
Corremos o risco de sermos acusados, na melhor das hipóteses de vitimismo ou de
amor gratuito pelo macabro; e na pior, de pura e simples mentira ou, talvez, de
ultraje ao pudor.
Esse silêncio é justificado? Devemos tolerá-lo, nós, os
sobreviventes? Devem tolerá-lo aqueles que, petrificados pelo espanto e pela
repugnância, assistiram, entre golpes, blasfêmias e gritos desumanos, às
partidas de vagões lacrados e, anos mais tarde, ao regresso de pouquíssimos
sobreviventes, alquebrados de corpo e espírito? É justo que se considere
cumprido o dever da declaração que fora tida como necessidade e obrigação
imediata?
Uma única resposta é possível. Não é lícito esquecer. Não é
lícito calar. Se calarmos, quem falará? Certamente não os culpados e seus
cúmplices. Se não dermos nossos testemunhos, num futuro próximo as ações da
barbárie nazista, por sua própria enormidade, poderão ser relegadas às lendas.
Portanto, é preciso falar.
No entanto, o silêncio predomina. Parte dele é fruto de uma
consciência insegura, ou mesmo de uma má consciência; é o silêncio daqueles
que, solicitados ou forçados a exprimir um juízo, tentam se desviar a todo
custo da discussão, e invocam as armas nucleares, os bombardeios indiscriminados,
o processo de Nuremberg, os problemáticos campos de trabalho soviéticos;
argumentos não desprovidos de peso em si, mas totalmente irrelevantes para os
fins de uma justificativa moral dos crimes fascistas, que constituem, eles
próprios, um monumento de ferocidade sem paralelo em toda a história da
humanidade.
Mas não é descabido mencionar outro aspecto desse silêncio,
dessa reticência, dessa evasão. Que se calem na Alemanha, que se calem os
fascistas, é natural, e no fundo não nos desagrada. Suas palavras não nos
servem para nada, não esperamos risíveis tentativas de justificação da parte
deles. Mas o que dizer sobre o silêncio do mundo civilizado, da cultura, nosso
próprio silêncio, diante de nossos filhos, dos amigos que regressam de longo
exílio em países distantes? Ele não se deve apenas ao cansaço, ao desgaste dos
anos, à atitude normal do primum vivere.
Não se deve à vileza. Existe em nós uma instância mais profunda, mais digna,
que em muitas circunstâncias aconselha-nos a calar sobre os Campos de
concentração ou, pelo menos, a atenuar, a censurar suas imagens, ainda tão
vivas em nossa memória.
É a vergonha. Somos homens; pertencemos à mesma família humana
de nossos carrascos. Diante da enormidade de suas culpas, também nos sentimos
cidadãos de Sodoma e Gomorra. Não conseguimos ser alheios à acusação de um juiz
extraterreno que, na esteira de nosso próprio testemunho, levantaria contra a
humanidade toda.
Somos filhos dessa Europa onde está Auschwitz, vivemos nesse
século em que a ciência se rendeu e gerou o código racial e as câmaras de gás.
Quem pode se dizer seguro de estar imune à infecção?
E há ainda mais a dizer: coisas dolorosas e duras que, para quem
leu Les Armes de La Nuit, não impressionariam.
Considerar gloriosa a morte de inumeráveis vítimas dos campos de extermínio é
vaidade. Não era gloriosa, era uma morte indefesa e nua, ignominiosa e imunda.
Assim como não é gloriosa a escravidão, houve quem soube sofrê-la incólume,
exceção a ser considerada com um reverente assombro, mas ela é uma condição
essencialmente ignóbil, fonte de degradação quase inevitável e de naufrágio
moral.
É bom que essas coisas sejam ditas, porque são verdadeiras. Mas
que fique bem claro que isso não significa associar vítimas e assassinos. Isso
não alivia, pelo contrário centuplica a culpa dos fascistas e dos nazistas.
Eles demonstraram para todos os séculos vindouros as reservas de perversidade e
de loucura que jazem latentes no homem depois de milênios de vida civilizada, e
esta é uma obra demoníaca. Trabalham com tenacidade para criar sua gigantesca
máquina geradora de morte e corrupção; um crime que não seria concebível.
Construíram seu reino com insolência, por meio do ódio, da violência e da
mentira. Seu fracasso é um alerta.
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