Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Ana Paula Henkel
Na minha luta inglória para explicar
para os gringos aqui nos EUA o que acontece do lado debaixo do Equador, meu
último desafio ainda é responder o que se passou na última semana no julgamento
da alma mais honesta do Brasil. “Como assim, investiga, julga, condena e depois
não prende?”. É assim, darling. É uma justiça que fuma mas não traga.
Eu deveria mencionar de leve que nós
temos “jeitinho”, mas que a lei é para todos, até para Marcelo Odebrecht, Eike
Batista, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Joesley Batista, Geddel Vieira, mas não
para Lula. “Ele não vai ser preso?”, questionam. Pra quê tantas perguntas, meu
Deus?!
Respondo então que, na verdade, ele
está em campanha, o que é crime também, lidera as pesquisas e pode ser eleito
presidente novamente em outubro. Silêncio, olhares incrédulos e depois mudam de
assunto porque, enfim, melhor não tentar entender mesmo.
Para ser justa, tivemos também por
aqui na América recentemente oito anos de ataques às instituições democráticas
do país, o que agora começam a emergir aos poucos, já que a grande imprensa não
parece tão interessada. Os americanos estão chocados com as recentes revelações
do aparelhamento do FBI para beneficiar a fracassada campanha de Hillary
Clinton enquanto dava credibilidade a um dossiê tão fajuto contra Donald Trump
que até para prevaricar o governo anterior se mostrou incompetente. Mentindo
bem, que mal tem? Cada país tem o Lula que merece.
Minha dificuldade, confesso, é
contextualizar tudo sem parecer que estou relativizando moralmente a questão,
que somos assim mesmo, mas ao menos nossas praias são lindas, jogamos bem o tal
do soccer e ganhamos décimo terceiro salário no final do ano. “Ué, mas não
tiram esse salário extra do valor mensal durante o ano e apenas devolvem
depois?” Ah, esses gringos racionais, haja paciência, perguntam demais.
Por conta do ensinamento e exemplo do
meu saudoso pai, acredito que verdade é verdade, crime é crime, sentença é
sentença. Como ensina a diva Elza Soares, “comigo não tem perhaps”, a lei é
para todos, inclusive para políticos protegidos por certa elite que nunca
lucrou tanto quanto no governo Lula e com a estatização da caridade do
socialismo de butique. A conta da bondade, no entanto, está sendo paga hoje
pelos brasileiros que não são “companheiros”.
Uma das histórias mais inspiradoras
que ouvi quando cheguei por aqui foi a do julgamento do “Massacre de Boston”,
ocorrido em 1770, poucos anos antes da Declaração da Independência. Em resumo,
um punhado de soldados britânicos, encurralados e ameaçados por uma turba de
arruaceiros da colônia, acabou disparando contra o grupo matando cinco deles e
ferindo outros seis.
Boston era o epicentro da resistência
aos colonizadores naquele momento e a cidade entrou em pé de guerra ao saber
das mortes dos rapazes pelos invasores britânicos. Não custa lembrar que três
anos depois, no mesmo local, houve a famosa Boston Tea Party, protesto que
inspirou o movimento popular homônimo de renovação da política americana
iniciado em 2009. A América deve muito ao espírito de resistência de Boston e
sabe disso.
O povo da capital de Massachusetts
queria vingança e sangue contra os “red coats” que tiraram a vida dos rapazes.
Treze militares britânicos envolvidos no massacre foram detidos e levados a
julgamento, mas os advogados da colônia sabiam que era um caso incendiário e
ninguém queria ser o defensor dos réus. Um advogado de 35 anos aceitou o
desafio porque considerava que todos merecem um julgamento justo e, ao final,
conseguiu seis absolvições.
O jovem defensor poderia ter se
tornado o homem mais odiado da América, mas acabou sendo seu primeiro
vice-presidente, segundo presidente e ainda fez seu filho presidente. John
Adams é merecidamente reconhecido como um dos pais fundadores da nação e figura
de destaque na luta da independência americana mesmo tendo, poucos anos antes,
conseguido absolver soldados britânicos pela morte de compatriotas. Entre o
aplauso fácil e a lei, optou pela segunda e seu exemplo ecoa até hoje na nação
que ajudou a criar.
Como qualquer outro país, a América
tem uma história complexa e repleta de erros e acertos, mas celebrar criminosos
ou colocar narrativas acima das leis não é um dos seus erros mais comuns.
Quando a lei é para todos, especialmente para os mais poderosos, uma mensagem
de respeito às instituições e à ordem é enviada para todos, solidificando as
bases civilizacionais que servem de alicerce para que continuem avançando. A
confiança nas instituições americanas e na aplicação das leis é um dos pilares
mais sólidos da maior potência mundial.
Outro ícone recente da defesa da
Constituição americana foi Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte falecido em
2016. Sobre o respeito à letra fria das leis, disse: “a Constituição não é um
organismo vivo, é um documento legal. Não há interpretações para a
Constituição, não há flexibilidade legal, há rigidez e ordem. Um juiz que
sempre fica feliz com o resultado das suas sentenças é um mau juiz”.
Declarações como essa tirariam o sono de muitos ministros do STF, companheiros
cada vez mais criativos nas suas decisões.
Que o espírito de Scalia paire sobre
a guardiã das leis, a presidente do STF, Ministra Carmem Lúcia, e que ela não
interprete, mas aplique as leis do país, medida que qualquer nação séria
tomaria. O povo não quer flexibilidade legal, o povo quer ordem. O Brasil
precisa amadurecer ou seremos a eterna nação do futuro.
Tenho John Adams, vivido por Paul
Giamatti numa série inesquecível da HBO de 2007, como um dos meus heróis. Adams
é o autor da célebre frase “somos uma nação de leis e não de homens” porque
conhecia a natureza falha e imperfeita do homem e acreditava no império das leis
como antídoto na luta contra o crime e a desordem.
Enquanto o brasileiro de bem tenta
fazer as pazes com o patriotismo e começa a andar de novo de mãos dadas com
algumas instituições, o STF não pode continuar flertando com o tal “jeitinho
brasileiro” de interpretar as leis de acordo com o réu. John Adams deveria
servir de exemplo a todos que estão relativizando as leis por conta de agendas
políticas, passando uma das mensagens mais corrosivas e erradas para as futuras
gerações que se pode imaginar, minando por tabela a já baixa credibilidade das
instituições brasileiras. Com Adams, também não tinha perhaps.
Ana Paula Henkel é jogadora de Vôlei. Originalmente publicado no
Estadão em 29 de janeiro de 2018.
2 comentários:
a lei é para todos, inclusive para o juiz midiático, aos procuradores vazadores e aos funcionários arapongas da PF.
Excelente!!!
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