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Por Fernando Gabeira
É um momento de escolha de
ministros, definição da estrutura do governo. Não importa o que saia daí, o que
nos espera no ano que vem é inescapável: o Brasil pode quebrar. A reforma da
Previdência não é só um momento de alívio para o governo Bolsonaro, mas também
para 14 Estados em profunda crise financeira, entre eles Rio de Janeiro, Minas
e Rio Grande do Sul.
Visitei Minas para ver melhor o
que aconteceu nas eleições. Inédita na História, a vitória de Romeu Zema, do
Partido Novo, contou com 71,8% dos votos. Foi um salto no escuro, preferível
para os eleitores aos velhos partidos que dominaram o Estado: PSDB e PT.
A melhor forma de começar uma
nova época é realizar a reforma da Previdência. Não resolve tudo, mas indica
que o mais difícil foi feito. Paradoxalmente, a reforma é a maneira de seguir
vivo até 2022, mas significa, no primeiro instante, uma perda de popularidade.
Na Rússia, a reforma previdenciária roubou muitos pontos de aceitação do
governo Putin. Sufocada pela Copa do Mundo, a resistência manifesta-se também
numa desconfiança, uma sensação de perda.
Segundo o Moscou Times, essa
reforma foi decidida por Putin, mas seu déficit talvez pudesse ser facilmente
coberto pelos excedentes do petróleo. Mas e os investimentos, a defesa? O
governo precisava se antecipar.
No caso grego, a reforma talvez
não tenha desgastado tanto a esquerda no poder. Era claramente inevitável. E
havia a pressão da União Europeia. O ressentimento acabou canalizado para
Angela Merkel.
No caso brasileiro, a reforma
da Previdência tem uma chance singular. Ela é claramente uma forma de
neutralizar o processo de transferência de renda dos mais pobres para os mais
ricos. Ela tem um quê de Robin Hood, mas esse encanto sozinho não basta para
emplacá-la.
Em primeiro lugar, será preciso
convencer os pobres de que, no fundo, estão ganhando com as mudanças; em
segundo lugar, e isso é colossal, vencer a resistência das corporações, algumas
articuladas com partidos da esquerda.
O ajuste fiscal será a primeira
grande prova tanto para Bolsonaro como para Zema.
O ano que vem marca o início de
uma fase triunfante do liberalismo. Ele bateu o marxismo no terreno, mas também
partilha com ele um certo idealismo. Um vê no Estado o caminho da salvação, o
outro vê no mercado. Como observa John Gray na sua crítica à Nova Direita na
Inglaterra, ambos ignoram que são construções humanas e, como tal, imperfeitas.
Uma conclusão de Gray é que
essas correntes idealistas veem a vida política de uma forma que conduz a
derrotas. Elas tendem a investir num projeto de esperanças transcendentais,
numa época sem fé. O conselho realista de Gray é baixar a bola, aceitar a
humilde tarefa de uma improvisação sem fim, em que um bem é comprometido para
salvar outros, uma espécie de equilíbrio entre os males necessários da vida
humana e a perspectiva sempre presente do desastre a ser despachada para outro
dia.
Não chego a tanto. Ele
teorizava sobre os liberais que concluíam sua passagem pelo governo. Aqui, os
vencedores precisam pôr suas ideias em ação.
Mas não consigo esquecer a
experiência vivida no Congresso. Vi muitos grandes projetos. E vi sua
trajetória real. Alguns deles costumo comparar com o grande peixe pescado pelo
velho Santiago no romance O Velho e o Mar, de Hemingway. Comido aos pedacinhos,
chegou à praia apenas como um grande esqueleto.
Assim como foi com o marxismo,
os liberais vitoriosos correm o risco do que se chama húbris ideológico. Húbris
é uma palavra grega que traduzimos como excesso de autoconfiança. De modo
geral, esse excesso de autoconfiança é inerente à nossa prática de perseguir
princípios universais, esquecendo a política como uma humilde discussão
racional, uma acomodação mutual, em busca de um modus vivendi.
De qualquer forma, o Estado
brasileiro é uma carga pesada nas costas da sociedade.
Lembro-me de que há quase uma
década já discutíamos isso, da ineficácia de algumas estatais aos gastos
escandalosos da máquina. Numa das comissões temáticas, questionei os gastos
anuais do governo com viagens: R$ 800 milhões. Naquela época já havia um leque
de possibilidades tecnológicas, do Skype às teleconferências. Essa escolha
liquidaria os gastos. Mas reduziria os ganhos do funcionalismo com diárias.
A relação dessa gigantesca
máquina político-partidária com a sociedade precisa ser resolvida em favor das
pessoas.
O aumento dos juízes do STF vai
nos custar R$ 6 bilhões. É um preço alto, caro, em bens e serviços. Mas tem um
lado pedagógico: ficou claro para todo mundo como a elite burocrática se
apossa de uma parte maior do bolo, numa sociedade mergulhada na crise
econômica.
Creio que muitas pessoas
votaram contra isso. Se minha presunção é verdadeira, está em curso uma modesta
revolução cultural.
Muitas pessoas que viam no
Estado um provedor, e de certa forma a Constituição o moldou assim, começam a
vê-lo como um obstáculo, sanguessuga.
Isso é o caminho para que seja
revisto, de acordo com as circunstâncias históricas e culturais do Brasil de
hoje. Não será necessariamente mínimo, que é uma construção ideal. Ele será o
que resultar desse que, para mim, é o grande embate de 2019.
No passado, quando terminavam
as eleições as pessoas se voltavam para seus problemas, o que é saudável. A
verdadeira força transformadora, no entanto, virá da sociedade, e não de
esquemas ideais. É possível que, num quadro de crise, ela continue alerta, pois
agora começa a viver as consequências de sua escolha.
Não será um ano fácil. Aos que
podem, é recomendável ao menos uma semana de férias. Isso porque a economia é
apenas uma variável. Além dos 12 milhões de desempregados, parte do território
urbano é ocupada por grupos armados, as cadeias são um barril de pólvora, a
corrupção se estende pelo interior.
Não sei se exagero, mas
sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável.
Fernando Gabeira é Jornalista. Originalmente publicado no jornal
Estado de São Paulo em 16 de novembro de 2018.
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