Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Gaudêncio Torquato
A política desceu ao fundo do poço. Nos últimos tempos, parcela
ponderável da representação popular caiu nas malhas da Operação Lava Jato. Sua
imagem está em baixa. É verdade que temos um novo quadro parlamentar no Senado
e na Câmara. Tradicionais nomes foram despejados das cúpulas côncava e convexa
do Parlamento. Persiste, porém, a dúvida: os novos nomes representam
compromissos com uma nova política?
Os sinais não são animadores. A base do governo, em processo de
formação, mostra que, sem participar da administração federal, não vai fincar
pé em sua defesa. O dilema se impõe: como pode o país exibir melhorias nos
níveis gerais de vida da população – taxas de escolaridade, distribuição de
renda, Índice de Desenvolvimento Humano – quando a qualidade política deixa a
desejar?
Norberto Bobbio lembra que o valor central da democracia representativa
é o papel do “quem”: o parlamentar deve ser fiduciário e não um delegado; e,
quanto ao “que” (fazer), o fiduciário deve representar demandas sociais e não
interesses particulares. O titular de um mandato vincula-se ao eleitor, ao qual
deve obedecer.
Entre nós, os ajuntamentos que consideram o mandato seu feudo se
multiplicam. São esses que têm como foco cargos e espaços no governo, por
entenderem o mandato como domínio pessoal. Grande parte desses tipos integra o
que se chama de “baixo clero”, geralmente localizado nos fundões do plenário.
Essa legião seria mais sensível a barganhas. Não se pretende dizer que os cardeais
do “alto clero” são puros. Dinarte Mariz, estrela do Senado nos tempos de
chumbo, costumava dizer: “todo homem tem seu preço e eu sei o preço de
cada um”. O velho senador potiguar se referia ao indefectível traço do
caráter político: o jogo de recompensas.
O rebaixamento do nível parlamentar se reforça com a substituição do
paradigma clássico da democracia representativa – a promoção da cidadania –
pelo parâmetro de uma “democracia funcional”, formada para abrigar interesses
de grupos especializados da sociedade pós-industrial. Cientistas políticos,
como o francês Maurice Duverger, chegam a definir a democracia de nosso tempo
como “tecnodemocracia”, amparada em organizações complexas e nos conjuntos que
integram um novo triângulo do poder, formado pelo sistema político, pela alta
administração e pelos círculos de negócios. (A Operação Lava Jato fisgou
representantes dessa tríade).
Em democracias clássicas, os impactos desse modelo, apesar de fortes,
não chegam a eliminar a missão dos partidos políticos. Mas em democracias
incipientes, como a nossa, os efeitos se fazem sentir. A perda de força dos
partidos abre espaço para a formação de bancadas temáticas, como as de grupos
econômicos (ruralistas, por exemplo); profissionais liberais (médicos,
advogados, etc); sindicalistas; religiosas; em defesa do armamento;
funcionários públicos etc. Seu traço de união é o corporativismo. São os
arquipélagos do oceano parlamentar. Tentam substituir o todo pelas
partes.
Sob essa formação, o processamento das demandas sociais passa a
enfrentar barreiras. A fragmentação de interesses obscurece a visão de
prioridades. Não se consegue definir um norte. Basta ver a pluralidade de
pontos de vista sobre as reformas, a começar pela Previdência.
O parlamentar que chega ao Congresso vai privilegiar o conjunto ao qual
pertence. Delegado de um grupo, o congressista vê-se livre de compromissos mais
amplos. Desse modo, o voto da base da pirâmide acaba sendo canalizado para
atores mais sensíveis ao balcão da política.
Sem doutrina, os atores personalizam o poder, transformando a política
em espetáculo. A degradação ganha volume, mais ainda ao se deparar com o poder
imperial do Executivo, useiro e vezeiro na arte de praticar um presidencialismo
de coalizão com a solda irresistível de cargos e posições na estrutura
administrativa. O cambalacho se expande. Não é de surpreender que perfis
canhestros, afeitos ao Estado-Espetáculo, passem a dominar os espaços do
Parlamento. Eis o preço de uma democracia claudicante.
A esperança é a de que o Brasil pós-Lava Jato encontre o fio da
racionalidade e a representação política, estonteada pelos abalos que macularam
a instituição parlamentar, inicie nova jornada, usando sabão e esponja para
limpar a lama que inundou os dutos das casas congressuais.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor
político e de comunicação Twitter@gaudtorquato.
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