Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Gaudêncio Torquato
Levar 39 kg de cocaína na bagagem para o
Exterior e, mais, dentro de um avião da frota presidencial, é coisa para deixar
perplexo qualquer cidadão. O sargento da Aeronáutica, Manoel Silva Rodrigues,
flagrado em Sevilha, na Espanha, onde aguardava a comitiva do presidente
Bolsonaro de volta da reunião do G-20, em Osaka, no Japão, pode desvendar o
mistério: como a droga usa “mulas” das Forças Armadas para sair do país?
O lamaçal está em todas as partes, até nos
santuários considerados sagrados e invioláveis, como deveriam ser o Judiciário
e as Forças Armadas. Norberto Bobbio, o filósofo italiano, em seu clássico O
Futuro da Democracia, aponta a eliminação do poder invisível como uma das
promessas não cumpridas pela democracia.
Esse poder consiste em ações criminosas de
grupos que agem nas entranhas da administração pública, dando formato a um
duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a “peitar” a estrutura
formal de mando. Exemplo desse fenômeno é o crime perpetrado dentro do sistema
de segurança do próprio presidente da República. Imagine-se o que poderia
ocorrer se na equipe houvesse um terrorista, alguém capaz de realizar um
atentado mortal.
O fato é que há uma máfia agindo nas sombras
da administração, não mapeada pelos órgãos de controle e segurança, como o
Gabinete de Segurança Institucional.
Pensemos. Um dos princípios basilares da democracia
é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, a
liberdade de expressão, instrumentos do poder estatuído. Já nos regimes
ditatoriais, o Estado pode agasalhar ilícitos e que ferem os direitos dos
cidadãos. As democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo, entre as
quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou
de grupos, a preservação de oligarquias e a expansão de redes invisíveis de
poder.
É assim que no seio das democracias vicejam
novas formas de ilegalidade, teias aéticas nas relações políticas,
clientelismo, voto fisiológico, manutenção de feudos, etc. Nessa esteira, as
massas passam a desacreditar na política e em seus atores. A apatia se instala.
As taxas de credibilidade nos governantes decrescem, como se observa hoje por
aqui, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se
abalam. O resultado de tudo isso é o atraso no processo de modernização
política e social.
As reformas que se pretendem promover – a
partir dessa complicada e polêmica reforma tributária – não ensejariam, sob
essa ótica, a eliminação das deformações da democracia, senão um lento avanço
no caminho do aperfeiçoamento democrático.
Portanto, sejamos realistas: teremos de conviver,
por muito tempo ainda com o poder invisível e suas nefastas consequências.
Apurar se políticos, empresários e organizações têm ou não dinheiro no
Exterior, se fizeram parte de esquemas de corrupção, se arrombaram os cofres da
Petrobras e do BNDES, investigar quem passa informações sigilosas para a
Intercept Brasil, ou, ainda, verificar as ligações entre procuradores e juízes,
são questões que não matam o vírus da corrupção.
Funcionarão como agulha lancetando um tumor,
mas este pode aparecer, a qualquer momento, em outra parte do corpo, caso não
seja atacada a origem da doença. E qual é a causa? Há muitas, mas o estágio
civilizatório de um povo é, em última análise, o fator determinante a balizar a
trajetória de um país. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem
ser da preferência dos governantes, enquanto a democracia necessita de cidadãos
ativos, conscientes, participativos.
A cidadania ativa é fruto da educação. Não
adianta fazer reforma política - mudar sistema de voto, exigir fidelidade
partidária, - se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando
de ovelhas pastando capim.
A promessa da democracia - de educar os
cidadãos - é, por isso mesmo, compromisso prioritário para que o Brasil possa
sair do estágio pré-civilizatório que se encontra em matéria de cidadania
política.
Quando todos os brasileiros estiverem
repartindo o mesmo prato cultural, inseridos no banquete da consciência cidadã,
nossas doenças culturais poderão ser curadas com simples vitaminas.
Gaudêncio Torquato,
jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de
comunicação Twitter@gaudtorquato
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