Yuval
Harari
Por Yuval
Harari
Quero usar esta oportunidade para falar sobre os novos desafios que nossa
espécie vai enfrentar no século 21. Mas antes, talvez fosse bom mencionar todas
as grandes conquistas da humanidade no passado recente, como inspiração para
superar este novo momento.
Acredito que a maior conquista da humanidade foi superar a fome, por
muitos anos considerada nossa grande inimiga. No passado, a maioria das pessoas
conviveu com a fome. Hoje, mesmo com desastres naturais como as secas, ninguém
morrerá de fome. Mesmo nos países em desenvolvimento, mais pessoas morrem por
comer demais, do que de menos. A fome sumiu do mundo. Hoje a única fome que
existe é a fome política.
Em países como Iêmen, Sudão, Síria, ainda se morre de fome, mas apenas
porque políticos e governos querem que seus povos passem fome.
O segundo ponto foi a superação das infecções. Hoje mais se morre de
doenças associadas à velhice do que de infecções. Antigamente as pessoas
morriam mais jovens, não viviam o suficiente para morrer de câncer.
O terceiro ponto, foi de que conseguimos superar guerra e violência.
Antigamente a guerra era entendida como algo natural de um mundo imperfeito, e
que apenas Deus poderia resolver as coisas através de milagre. Pode não
parecer, mas estamos vivendo a era mais pacífica da história. Tão pacífica que
o significado de paz no mundo, mudou. Antigamente paz significava falta
temporária de guerra. Hoje significa improbabilidade de guerra.
Há algumas guerras no mundo claro – venho de Israel e do Oriente Médio -,
mas não devemos nos cegar para o contexto global. Isso é menos comum do que em
qualquer outra época.
Mesmo incluindo Síria e Afeganistão, hoje os crimes de guerra matam menos
do que o suicídio em termos estatísticos. Ou seja, hoje você é seu pior
inimigo.
O açúcar é uma ameaça maior para sua vida do que a arma.
*
E os próximos desafios também são 3: o colapso ecológico, o retorno à
guerra e a disrupção tecnológica.
Em termos de guerra, se alguns humanos tomarem decisões estúpidas, a
guerra volta em um formato ainda pior. Com forças mais poderosas, em
desequilíbrio flagrante entre sabedoria e estupidez. Só um tolo é suficiente
para começar uma guerra, e este é um grande perigo.
O colapso ecológico, diferente da guerra, já é uma realidade presente ao
redor. Ninguém o quer, claro, mas ao mesmo tempo há algo inevitável que todo
mundo quer, que é o crescimento econômico. A única esperança realista é de que
surjam novas tecnologias ecoamigáveis.
E isso nos leva ao terceiro e mais complicado desafio: a disrupção
tecnológica.
A fantasia tecnológica de alguns poucos pode se tornar o pesadelo de
bilhões. Inteligência artificial e biotecnologia podem contribuir para nossa
evolução, claro. Por exemplo, hoje 1, 5 milhões de pessoas morrem de acidente
de carro por ano, sendo que 90%, por erro humano. Os veículos autônomos
salvarão 1 milhão de pessoas. Porém não quero passar muito tempo falando das
promessas das tecnologias, porque já ouvimos muito a esse respeito.
Meu trabalho como historiador e filósofo é diferente: é preciso destacar
os perigos que não são levados em consideração pelas empresas e corporações. A
disrupção da vida humana poderá acontecer de diferentes formas. Talvez vamos
enfrentar algo muito complicado do ponto de vista social e econômico.
Com a revolução industrial, o século 19 criou a classe trabalhadora
urbana. Ela corre o risco de se transformar em uma classe inútil no século 21.
Não inútil do ponto de vista da família e das relações afetivas, mas pela
perspectiva econômica e política.
Ninguém sabe como será o mercado de trabalho em 2050. Só se sabe que vai
ser completamente diferente do que é hoje. Inteligência artificial e robótica
irão mudar praticamente todas as profissões, e muitos trabalhos vão
desaparecer. Alguns emergirão, mas não sabemos se serão suficientes. E será
preciso recapacitar as pessoas para preencher estas vagas.
Por exemplo, um motorista que perde o emprego. Poderá ensinar yoga ou
virar engenheiro de software, mas como lidar com esta mudança aos 40 anos? E
mesmo que se capacite, não será uma solução de longo prazo, porque a automação
será contínua, e não apenas um único evento. Ou seja, com a automação vai haver
uma cascata de disrupções, uma seguida de outra, continuamente.
Nos teremos uma revolução em 10 anos, depois em 20, e assim por diante.
Então as pessoas terão que se reinventar não uma vez na vida mas talvez várias,
a cada década praticamente.
No passado as pessoas tinham que lutar contra a exploração; no século 21
a maior luta é contra ser irrelevante. Sendo quando você é explorado é menos
ruim, porque pelo menos você é necessário.
Esta revolução pode criar desigualdades sem precedentes. Não só entre
pessoas mas também entre diferentes países.
No século 19 alguns países se industrializaram primeiro, como
Grã-Bretanha e Japão. Se não tomarmos cuidado, o mesmo acontecerá agora com a
inteligência artificial. Já estamos no meio da corrida com a China liderando, e
a maioria dos outros países muito atrás.
No século 19, quem não se importou com a industrialização, com navios a
vapor e estradas, nos primeiros 30 anos, se transformou em colônia. Hoje, há
uma riqueza imensa em hubs como California e China. Acredito que os maiores
impactados serão os países em desenvolvimento. Porque a automação vai reduzir a
mão de obra sem qualificação, mesmo que ela seja barata. Haverá muitos novos
trabalhos para engenheiros de softwares em São Francisco e Pequim, e bem menos
para ofícios de têxtil ou caminhoneiro…
Mas o perigo maior está no nível político de ascensão das ditaduras
digitais – governos e regimes totalitários controlando todos o tempo todo. A
equação é muito simples: conhecimento biológico multiplicado por processamento
de dados resulta em hackeamento de seres humanos. A fusão da biologia com a
tecnologia pode resultar em dados suficientes para hackear milhões.
São algoritmos que vão te entender melhor do que você mesmo se entende.
Com poder para manipular seus sentimentos e substituir completamente suas
decisões. Eles não precisam te conhecer perfeitamente – para hackear só é
preciso conhecê-lo um pouco melhor. O que já é razoável porque você mesmo não
se conhece tão bem.
Eu por exemplo apenas com 21 anos descobri que era gay, depois de muito
tempo de negação na adolescência. O fato é que deixei passar algo extremamente
importante sobre mim durante este período, e isso não é incomum entre os gays.
Então você imagine uma situação em que o algoritmo poderá dizer se um
adolescente está no espectro gay, controlando por exemplo o movimento dos olhos
diante de uma imagem em que aparecem um homem e uma mulher sexies. O algoritmo
pode monitorar e hackear a serviço de governos e empresas. A Coca-Cola já
saberá sua preferência. Quando criar uma propaganda desenhada para você, ela
vai escolher se na imagem aparece um homem de sunga ou uma menina de biquíni.
Esse conhecimento vai valer bilhões e pode trazer consequências mais
sérias. No Irã por exemplo existe pena de morte para os homossexuais. O que
significaria para um homem gay ser detectado por este governo? Todos esses
segredos que valem a pena ser conhecidos, podem levar à ascensão de pior regime
totalitário da historia.
Será preciso se prevenir e se proteger não apenas de seu próprio governo,
mas de outros governos e instituições poderosas. Imagine você como seria a
política brasileira quando alguém na China souber todo histórico médico e
pessoal dos políticos, juízes e jornalistas, incluindo escapadas sexuais e
doenças mentais.
Não precisa enviar seu exército, é só coletar dados.
O hacker pode impactar nossa liberdade cada vez mais, com a inteligência
artificial tomando decisões por nós. Essa mudança já está a caminho. Hoje
bilhões confiam no algoritmo do facebook ou do google para nos dizer a verdade.
A Netflix nos diz o que assistir… No futuro nos dirão onde trabalhar, com quem
casar, ou se o Banco Central deve diminuir ou não a taxa de juros. E a resposta
será sempre a mesma: “porque o algoritmo disse assim”. O cérebro humano é
limitado. Não seremos capazes de entender o algoritmo e suas decisões, não
teremos essa capacidade de processar dados. Corremos o risco de perder o
controle sobre nossas vidas e a capacidade de entender as políticas públicas.
Hoje digamos que 1% da humanidade entende do sistema financeiro. No
futuro talvez seja zero.
Mas o que vai significar a vida humana quando todas as decisões forem
tomadas por um algoritmo? Não temos modelos filosóficos e existenciais para
entender e interpretar uma vida como essa.
Os políticos poderão criar o céu ou o inferno. Nós filósofos estamos
lidando com a dificuldade para conceituar o que será o céu e o que será
inferno. Se falharmos nestas utopias, vamos nos encontrar presos dentro delas
sem possibilidade de saída.
E a disrupção não será somente sobre economia, política ou filosofia, mas
biologia também. Teremos habilidade para criar novas formas de vida inorgânicas
depois de 4 bilhões de anos de vida orgânica. Entraremos em uma era da vida
inorgânica criada pelo design. Poderemos cometer erros graves. Governos,
corporações e exércitos podem tentar desenvolver modelos em que prevaleçam a
inteligência e a disciplina, mas negligenciando a compaixão, a sensibilidade, a
espiritualidade. Uma espécie de “super humanos”, inteligentes e disciplinados.
O que pode representar um downgrade de nossa espécie.
*
Que fazer sobre isso tudo? Primeiro, é preciso enfatizar que estas não
são profecias, apenas possibilidades. E não é tarde para agirmos. A tecnologia
não é determinista. Cada um faz dela o que quiser, basta comparar as duas
Coreias, por exemplo.
O que podemos criar agora? Talvez o mais importante e antigo conselho
seja ainda válido: conheça a si mesmo. Buda, Sócrates e Jesus não tinham
concorrência. Hoje, neste momento, vários governos e corporações estão tentando
hackear você. Querem saber mais a seu respeito para poderem vender produtos ou
política.
A terapia e a meditação pode ser um caminho para conhecer-se melhor.
Outros preferem fazer trilhas nas montanhas. Eu pessoalmente pratico 2 horas
por dia de meditação, além de fazer retiros que podem durar alguns dias. Cada
pessoa pode encontrar seu próprio método, e é importante que se invista tempo e
esforço nisso rapidamente.
Porque se os hackers chegarem antes, eles serão proprietários de você. As
pessoas mais manipuláveis são justamente as que acham que têm livre arbítrio.
50 pessoas juntas podem fazer mais que 500 isoladas. Muitas dados e poder
concentrados em um só local podem impactar negativamente.
Alguns países e pessoas certamente vão perder muito, por isso é preciso
criar uma rede de segurança global para proteger os membros mais fracos da
humanidade.
É importante, ao mesmo tempo, fortalecer as corporações globais, elas são
mais importantes que nunca. Nenhuma nação conseguirá resolver sozinha estas
questões ambientais e tecnológicas, porque nenhum governo tem poder para isso.
Ninguém quer fabricar um robô matador ou usar com más intenções a engenharia
genética de bebês. Não importa quem vai ganhar essa corrida, o perdedor será a
humanidade. E as grandes corporações podem contribuir para reverter este
processo. Trump diz que existe uma contradição entre nacionalismo e globalismo,
e se propõe a rejeitar o globalismo. Este é um erro muito sério – não há
contradição, porque nacionalismo não significa odiar estrangeiros. Se trata de
amar seus compatriotas, e no século 21 a única forma é cooperar com
estrangeiros. No século 21, os bons nacionalistas devem ser bons globalistas.
No século 20 aprendemos a criar um mundo mais pacífico através de lições
difíceis. Foram duas guerras e Stalin. No século 21, se não atingirmos um mundo
mais pacífico na primeira tentativa, a espécie pode não sobreviver. E se
desaparecer, não será o fim do mundo. Talvez os ratos vão assumir e aprendam
com nossos erros. Espero confiar em pessoas e não em ratos.
Yuval
Harari, historiador e filósofo israelense, autor da trilogia best seller
Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século 21, esteve em um evento
corporativo da HSM na manhã de 12 de novembro, no qual apresentou um
impressionante painel sobre o futuro da humanidade. O texto transcreve sua
fala.