Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Sylvia
Dantas
Adentrar um outro universo cultural não é tarefa fácil. Os contatos
interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem migra
como para as sociedades que recebem os novos grupos. Interculturalidade é um
termo que assinala uma dimensão de interação, contato entre pessoas de culturas
distintas e de universos simbólicos compartilhados. Os estudos interculturais
apontam que as diferenças culturais são em geral antes um fator de conflito do
que de sinergia.
Cabe lembrar que a mudança para outra sociedade e cultura coloca em xeque
o modo de ser, o modo de ver o mundo, o modo de se ver e o modo de se
relacionar, trazendo à tona a questão de quem se é. Esse desconcerto ocorre,
pois as pessoas são socializadas em uma determinada cultura e isto significa
uma incorporação marcante de formas de sentir, de pensar e de agir que envolvem
processos de identificação intensos. E quando as pessoas vão morar em outra
cultura isso representa uma ruptura expressiva desse quadro de referência, de
sentido e pertencimento.
A mudança de país impõe ao migrante múltiplas perdas já que deixa para
trás familiares, amigos, trabalho, ambiente físico, língua, normas sociais,
locais conhecidos e a memória social. Além disso, tem de ajustar-se a um novo
local, aprender novos códigos sociais, pois sua forma de agir não mais
corresponde ao entorno, o que antes era parte da rotina, torna-se um desafio
diário. Estar entre dois mundos culturais significa adentrar diferentes jogos
de espelho realizados pelos outros. Esses reflexos podem afetar tanto
positivamente quanto negativamente o sentimento de competência e valorização do
self que aliados ao processo de reflexão e observação simultâneas de si mesmo
são a base da formação identitária.
Assim, vemos que os desafios são imensos e tornam-se maiores quando o
país receptor não está preparado para essa realidade cada vez mais constante no
mundo atual. A maior parte dos imigrantes fará uso das instituições públicas do
país receptor como instituições educacionais, postos de saúde, hospitais,
órgãos responsáveis pela documentação requerida, órgãos de assistência social,
e assim por diante.
No Brasil, observamos iniciativas importantes por parte principalmente de
associações civis, organizações não governamentais, e instituições públicas
quando geridas por funcionário sensível a imigração, mas que constituem
trabalhos como que pontuais diante a demanda atual. O país carece de uma
arquitetura institucional de acolhimento. São Paulo, onde há o maior número de
imigrantes é a única cidade brasileira a adotar uma política municipal de
imigração, fruto da mobilização dos movimentos sociais de imigrantes e
organizações sociais e a gestão municipal de 2013 a 2016.
A motivação da partida, o momento de chegada e ajuste ao novo ambiente
envolvem processos psicológicos específicos a essa situação. Importante
destacar que quando dizemos isso apontamos que qualquer pessoa que passe por
essa experiência vivenciará processos de aculturação psicológica e estresse de
aculturação. Assim, o imigrante ou o refugiado não são os problemáticos ou o
problema a ser tratado. Problema é a sociedade não estar em sintonia com os
novos tempos.
A compreensão desses processos é urgente para que se realize um trabalho
preventivo nas instituições que recebem essa população. Contudo, a fim de que
isso seja possível vemos como necessário uma mudança de mentalidade e nesse
sentido nosso trabalho de formação de profissionais que lidam com essa temática
se pauta em uma abordagem intercultural crítica. Vejamos o que se entende por
interculturalidade.
Dependendo da área de conhecimento, país, continente ou época o termo contém diferente nuances, sendo portanto, polissêmico. Na educação, a educação intercultural foi inicialmente formulada pela Unesco em 1978, propondo uma “educação para a paz” e “prevenção ao racismo”. A definição vai mais além quando importantes pensadores da área colocam que a interculturalidade só se produz quando um grupo começa a entender e assumir o significado que as coisas e os objetos têm para os outros. A maioria dos pesquisadores ocidentais ou ocidentalizados projetam um pensamento causal e “lógico” sobre as manifestações de outras culturas que não corresponde à autocompreensão da população local e quando ultrapassa seu próprio campo, pode destruir o universo simbólico de outras culturas.
Dependendo da área de conhecimento, país, continente ou época o termo contém diferente nuances, sendo portanto, polissêmico. Na educação, a educação intercultural foi inicialmente formulada pela Unesco em 1978, propondo uma “educação para a paz” e “prevenção ao racismo”. A definição vai mais além quando importantes pensadores da área colocam que a interculturalidade só se produz quando um grupo começa a entender e assumir o significado que as coisas e os objetos têm para os outros. A maioria dos pesquisadores ocidentais ou ocidentalizados projetam um pensamento causal e “lógico” sobre as manifestações de outras culturas que não corresponde à autocompreensão da população local e quando ultrapassa seu próprio campo, pode destruir o universo simbólico de outras culturas.
A interculturalidade enfoca a necessidade de privilegiar o diálogo, a
vontade da inter-relação e não da dominação. Nesse sentido, a partir da filosofia
propõe-se uma visão intercultural crítica que implica na descolonização dos
saberes, a favor de um equilíbrio epistemológico no mundo. Na área do direito,
interculturalidade também não se limita ao necessário reconhecimento do outro,
mas a resistência aos processos de construção de hegemonia e criação de
mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam reconhecimento e
transferência de poder.
Diferente do multiculturalismo, a interculturalidade crítica assinala uma
política cultural baseada não simplesmente no reconhecimento ou na inclusão,
mas também dirigida a uma transformação estrutural e sócio-histórica. A
interculturalidade crítica está vinculada a decolonialismo que desde e com os
povos indígenas e afrodescendentes propõe uma nova razão e humanidade que
reverta o eurocentrismo e colonialismo do conhecimento, o uso da etnia branca e
ocidental como padrão e a razão sobre o sentir-existir como signo de humanidade
assim como a colocar o homem sobre a natureza.
Na psicologia, a Psicologia Intercultural surge nos anos 60 a partir da
consciência de que grande parte dos estudos na Psicologia são formulações
etnocêntricas, já que baseadas em grupos ou amostras de pessoas da América do
Norte ou da Europa, países hegemônicos ou centrais quanto à economia e política
globais. Teorias psicológicas que não representam a grande diversidade da
população mundial, e que são generalizadas para todos os seres humanos.
Produções e associações de pesquisadores de língua inglesa se desenvolvem ao
lado de produções e associações francófonas de psicologia intercultural.
O campo é amplo e sofreu muitas mudanças. O que o unifica é a proposição
de incorporar a cultura como fator fundamental na conduta humana em contraste
com a longa rejeição por parte da psicologia da dimensão cultural. O
denominador comum corresponde à perspectiva universalizante da suposição de que
processos psicológicos são compartilhados por todos os humanos, mas sua forma
de desenvolver-se e expressá-los variam conforme a cultura. A chegada de novos
grupos para o país e seu impacto precisa ser abordado e compreendido a fim de
que o Estado possa implementar políticas voltadas para medidas preventivas que
propiciem um contato pautado em conhecimento e compreensão do processo
migratório.
Infelizmente, temos visto em países de governos de extrema-direita a
criminalização do imigrante. O imigrante e refugiado tornam-se bodes
expiatórios em épocas de crise econômica e política, ou seja, são vistos como
objeto de culpa do sistema social, sendo a eles atribuída a causa do desemprego
e de outros problemas sociais. Dessa forma, aspectos dos sistemas sociais, como
a exploração capitalista e a competição gerada por esta, são ocultados do
público a fim de não gerar seu possível questionamento.
Em alguns países, como no Canadá, notamos que a política migratória
envolve todo o processo de inserção do migrante e refugiado, como aprendizado
da língua local, verba para manutenção, moradia, inserção no mercado de
trabalho, educação e assistência à saúde.
É importante entender que todos temos o direito de ir e vir, um direito
fundamental que está em nossa constituição e na declaração de Direitos Humanos
das Nações Unidas. O contato entre culturas, com outras formas de entender a
vida ao invés de ser uma ameaça é a possibilidade entendermos o quanto o ser
humano é criativo, nada está dado e temos uma oportunidade de ampliar nossos
horizontes para um bem viver de todos.
Sylvia Dantas é Professora e coordenadora do curso de Especialização Saúde mental, imigração e interculturalidade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Sylvia Dantas é Professora e coordenadora do curso de Especialização Saúde mental, imigração e interculturalidade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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