Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por
Gaudêncio Torquato
A
imagem de Thêmis, a deusa da Justiça, tem aparecido sob densa névoa aqui por
nossas plagas. De olhos vendados e segurando uma balança, símbolos da
imparcialidade, do equilíbrio e da igualdade da Justiça na hora de julgar os
acusados, a deusa porta ainda uma espada, sinal de imposição. O nevoeiro que
encobre a imagem da divindade é trazido por eventos que abalam o conceito de
nossa mais sagrada instituição, o Poder Judiciário.
Na
semana passada, foram afastados por 90 dias de suas funções o presidente do
Tribunal de Justiça da Bahia e outros cinco magistrados, na esteira de uma
operação da PF para apurar suposto esquema de venda de decisões judiciais. Aqui
e ali aparecem casos sobre ilícitos cometidos por juízes, situação que tem
levado o Conselho Nacional de Justiça a instaurar Processo Administrativo
Disciplinar. Desde 2009, foram expulsos da magistratura pelo CNJ 58 juízes que
teriam recebido cerca de R$ 137,4 milhões por denúncias de
irregularidades.
O
fato é que a onda criminosa, como metástase de um câncer, propaga-se
rapidamente pelo organismo nacional, infiltrando-se até no Poder Judiciário. A
constatação é grave. Afinal de contas, trata-se do Poder identificado com a
virtude da moral. Representa o altar mais elevado da verdade e da justiça.
Infelizmente, acusações, mesmo isoladas, atingindo um ou outro, acabam
maculando a imagem da instituição. Nesse novo ciclo na vida política do país, a
imagem de um Judiciário apequenado constitui um dano à alma nacional.
Nunca
se viu tanto impropério contra magistrados de nossa mais Alta Corte, sendo
alguns marcados com a pecha de parciais. Há nove recursos no Senado solicitando
impeachment de ministros. O tiroteio chega ao ex-juiz Sérgio Moro, que teria
conversado cinco vezes com Paulo Guedes, antes do pleito de outubro de 2018,
tratando de sua investidura como ministro da Justiça. Ele nega, mas o caso é um
petardo sobre a “imparcialidade” do juiz que comandou a Operação Lava Jato.
Nenhuma
autoridade pode se escudar no manto sagrado do cargo. O Judiciário que, sem
demérito aos outros, é o melhor dos Poderes da República, seja pela identidade
de seus integrantes, seja pela nobreza de suas funções constitucionais, há de
atentar para comportamentos de seus pares. Deve abrir suas comportas e exibir
transparência em uma lição de grandeza para limpar os pulmões judiciais e
inaugurar nova era de respeito, credibilidade e deferência à instituição.
Por
trás de tais eventos negativos, está a crise do Estado brasileiro, aqui posta
em termos de desorganização, inadequada repartição de recursos e encargos,
deficiências de estrutura e quadros, política de clientelas, patrimonialismo,
mancomunação de interesses, conivência entre atores políticos e agentes da lei.
Uma malha criminosa, essa é a verdade, grassa nas três instâncias da
administração pública.
Não
é o caso de se tomar a parte pelo todo. Mas não se pode deixar de aduzir que,
se o nosso mais alto Tribunal é atingido por denúncias, na esfera das
instâncias mais baixas, a probabilidade de existência de interesses escusos é
maior.
Em
muitos Estados, as práticas administrativas são muito influenciadas por
costumes políticos desenvolvidos no seio de grupos. Infelizmente, a figura do
juiz, em nosso País, já não se cerca daquela aura sagrada que tanto reverência
impunha no passado. Os juízes assumiam na plenitude aqueles traços nobres, que
Bacon tão bem descreveu em seus ensaios: “os juízes devem ser mais instruídos
do que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspetos do que
audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função
os caracteriza.” O rebaixamento dos níveis educacionais, dos padrões
técnicos e da qualidade dos recursos humanos, o descumprimento à tripartição
dos Poderes e o arrefecimento de valores fundamentais se fazem presentes na
banalização da vida pública.
O
juiz ainda tem de enfrentar um calvário particular, a via crucis da
crise no seu espaço profissional, determinada pelos dilemas impostos pelo
caráter dual do Estado brasileiro. De um lado, o Estado liberal, fincado nas
bases do equilíbrio entre os Poderes, no império do direito e das garantias
individuais. De outro, o Estado assistencial, de caráter providencial, voltado
para a expansão dos direitos sociais, ajustados e revigorados pela Constituição
de 88.
Os
resultados vão bater na mesa do juiz: enxurradas de demandas repetitivas em
questões de toda a ordem – trabalhistas, tributárias e previdenciárias.
Milhares de reclamatórias vão parar nas instâncias da Justiça, visando repor
direitos. O próprio Estado é quem mais entope as veias do Judiciário. Que
precisa ganhar condições para atender às demandas de uma sociedade cada vez
mais exigente.
Gaudêncio Torquato,
jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de
comunicação Twitter@gaudtorquato
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