Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por
Gaudêncio Torquato
O lamento do timoneiro Simon
Bolívar, expresso há dois séculos, parece apropriado para explicar esses tempos
tão conturbados: “não há boa fé na América, nem entre os homens nem entre
as nações. Os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as
eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento”. O
cotidiano nacional que o diga.
A desconfiança grassa. A boa fé
entre os homens se esvai com a poeira das falsidades. As emboscadas se
multiplicam. Matar? Coisa banal. A política é uma colcha de retalhos. Partidos
são fontes de negócios. Hoje, há 33 e daqui a pouco, se não houver um basta,
chegarão a 70. O governo vai tocando sua orquestra com seguidas mudanças de
músicos, com destaque para generais de grande expressão. Tem dois pilares de
destaque: um pilota a economia e é chamado de “Posto Ipiranga”; outro comanda a
Justiça e a Segurança Pública, podendo vir a ser um quadro importante no pleito
de 2022.
Ontem, petistas semeavam o ódio
com o refrão “nós e eles”. O maestro, Luiz Inácio, continua glorificando os
tempos da “redenção nacional”, sob o lema: “nunca se fez tanto na história no
Brasil”. E não reconhece os desvios que governos petistas cometeram e que
resultaram na maior recessão econômica da história.
Hoje, bolsonaristas cultivam a
divisão social com o refrão invertido “eles e nós”, sob a égide de um capitão
que tenta desfraldar a bandeira do “afastamento do país” da ameaça comunista.
Cada qual com seu bornal.
Os Poderes vivem às turras,
disputando o ranking das polêmicas.
Dias Tofolli, o presidente do
STF, havia decidido implantar a criação do “juiz de garantias” em 180 dias; o
vice-presidente Luis Fux barrou sua pretensão, suspendendo a questão por tempo
indeterminado. O governo tinha urgência em aprovar a reforma administrativa.
Dispõe-se, agora, a arquivá-la. E a tributária? Uma briga de cachorro grande.
No Congresso, o desfile de falas e caricaturas se estenderá até as margens do
pleito de outubro. Ainda sob os velhos tempos do livrinho de São Francisco: “é
dando que se recebe”.
A Constituição, um amontoado de
detalhes, abre espaços para litígios. Muitos de seus artigos e incisos não são
obedecidos. Quando a lei maior deixa de ser cumprida engendra-se uma cultura de
impunidade e desorganização. Assim, os tratados constitucionais perdem força,
transformando-se em letra morta.
E as eleições? Vejamos a deste
ano, a se realizar em outubro. Serão uma batalha renhida, onde não faltarão
impropérios, fake news, denúncias recíprocas entre situacionistas e
adversários, muita calúnia e farta difamação, compra de votos (sim, isso
continuará), cooptação com emprego, distribuição de benesses. A política, como
exercício de defesa de um ideário, missão para salvaguarda dos interesses
coletivos, se transforma em negócio. E que negócio. De missão transforma-se em
profissão. Aristóteles jamais imaginou que a arte de fazer o bem fosse usada
para multiplicar os bens de alguns. Milhões inundam os cofres partidários. Vai
ser uma briga danada disputar os nacos.
A liberdade, esteio da
democracia, vira baderna gerada por liberalidade extrema, improvisação,
irresponsabilidade, invasão dos espaços privados. Vituperar contra a imprensa
torna-se prática predileta de governantes (e da oposição, exemplo é Lula). O
escopo libertário esculpido pela Revolução Francesa mais parece fantasia.
Dignidade e Cidadania? Sim, para uns. Para milhões, nada. O inimigo, que era o
Estado opressor, veste a roupa do Estado coletor. Impostos e tributos sobem a
montanha. Vilania e torpeza conspurcam o altar dos direitos e da igualdade.
Os cárceres agora são
escritórios da violência. Comandam exércitos que traficam armas e drogas. A
morte por assaltos ou balas perdidas pega gente de todas as idades. Milhares de
leis são papéis rotos. Descumpridas. A anomia ganha corpo. Os órgãos de
controle e defesa social – MP, PF, AGU, entre outros – disputam poder. A
angústia do desemprego fustiga quase 12 milhões de brasileiros. A Operação Lava
Jato perde força. Grupos continuam a se incrustar na administração pública –
nos níveis federal, estadual e municipal. Interesses escusos. A corrupção
acabou? Nada. Pode ter diminuído um tiquinho. É mais tecnológica.
O lamento de Simon Bolívar está
escrito tanto nos mais centrais como nos mais longínquos cantos do território.
Claro, sem falar nas terras venezuelanas, onde Maduro está caindo de podre.
Gaudêncio Torquato, jornalista,
é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato
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