Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Ana Maria Machado
O que está acontecendo conosco? Como
chegamos a este ponto? Como pretendemos ser uma nação digna desse nome se todo
mundo parece fazer questão absoluta de deixar de cumprir a lei? Ou, pelo menos,
é capaz de qualquer esperteza e malabarismo moral para garantir que ela não se
aplique no seu caso. Até mesmo os legisladores, que fazem as leis, não
demonstram o menor respeito por elas. E os que ocupam o Executivo e deveriam
executá-las, depois de manobras, jeitinhos e pedaladas de todo tipo para se
livrar dessa obrigação, ainda posam de vítimas e jogam a culpa nos outros. Sem
esquecer que abusam de uma pretensa criatividade que não engana ninguém, ao
buscarem anistias de todo tipo que anulem seus delitos no caso de serem
descobertos.
Esse comportamento de vitimização
associada à culpabilização alheia é parte integral da maneira como funciona o
mecanismo perverso. Começa pela negação da realidade, tão conhecida e já
estudada desde Freud. O sujeito se recusa a tomar conhecimento dos fatos reais,
substituindo-os por falsidades e versões deturpadas, agora chamadas de fatos
alternativos, pós-verdades, contranarrativas. Em seguida, na construção de um
relato imaginário de martírio ou heroísmo, cultiva a disseminação de
ressentimentos que espalhem e propiciem atitudes coletivas de cobrança e
revanche, hostilidade e agressão difusa e indiscriminada dirigida contra todo e
qualquer cidadão passível de não ser mais visto como próximo, compatriota ou
merecedor de respeito, solidariedade ou compreensão — e então passa a
conveniente alvo de agressão e justiçamento.
Caímos assim neste insuportável clima
que vivemos, em que as pessoas parecem bandos de feras, alcateias de lobos
ferozes à solta buscando quem atacar. Linchamentos digitais cotidianos
extrapolam para eventuais linchamentos físicos. A estupidez ultrapassa todos os
limites. Ativistas de uma nobre causa como o combate ao racismo se dão o direito
de agredir quem amarra um lenço na cabeça, em nome da preservação do uso de
turbantes como ridículo monopólio de um princípio inexistente. Mas o absurdo do
episódio baseado numa falsidade não impede que a vítima sofra uma dor real.
Aliás, ninguém se sente responsável
por nada. A ciclovia que desabou com a primeira onda mais forte e matou pessoas
cai no mesmo poço de irresponsabilidade que a barragem que estourou, matou
gente e animais, arrasou com todo um ecossistema e a economia de uma região. Os
salários de funcionários que atrasam, os reajustes negados, as verbas que
deixam de chegar para educação, saúde, saneamento, segurança pública e outros
serviços essenciais, tudo isso é visto como se não tivesse relação alguma com o
descumprimento das leis — tenha sido por meio de fraudes, compadrio, corrupção
de todo tipo ou irresponsabilidade fiscal.
E quando algum braço legal tenta
alcançar os culpados, é estarrecedor constatar como estes se mexem com tanta
eficiência e esperteza para fugir à consequência de seus atos e atacar quem
busca garantir a lei. Depois do motim dos PMs do Espírito Santo (que se
escondem atrás das saias de mulheres muito organizadas e informadas e, jurando
inocência, não assumem que estavam em greve), quando mais de 140 pessoas foram
assassinadas e ainda não se conseguiu fechar a conta dos prejuízos, a principal
reivindicação que fazem é anistia total, sem punição para ninguém.
Tinham toda razão ao querer melhores
condições de trabalho, ainda que haja versões bem diferentes quanto à defasagem
de vencimentos e ao reajuste pleiteado. Perderam toda e qualquer razão por sua
irresponsabilidade, ao descumprir a lei que juraram defender. Ficaram
tragicamente ridículos com toda essa farsa e se igualam aos bandidos. Mesmo se
a reivindicação inicial era justa, eles (ou suas mulheres) corroem seu direito
ao contribuir para a morte de quem banca seus salários por meio dos impostos
pagos.
Em Brasília e adjacências, os
pilantras que querem enterrar a Lava-Jato aproveitam a pátria distraída com o
verão e carnaval. Cumprem o planejado (e revelado em maio nas gravações de
Sérgio Machado). Juntam-se todos, cada macaco no seu galho, em suas tentativas
de obstrução da Justiça. Avançam seus lances nesse jogo de xadrez — para não
irem para o xadrez real. Manobram por mais impunidade no descumprimento da
constituição e do conjunto de leis que nos regem. Não uma reles portaria de
qualquer juizeco, como diria Renan. Aliás, que fim levaram os documentos que a
investigação tinha ordem de levar e que a polícia do Senado fez aquele escarcéu
para impedir?
A lei é dura, mas é a lei, garante o
sábio princípio que sustenta o convívio social. O que está acontecendo conosco,
que assistimos boquiabertos a tudo isso mas nos anestesiamos a ponto de deixar
escalar assim? Às vezes até tentamos nos enganar, como cúmplices que buscam dar
razão a tantos coitadinhos, perseguidos, injustiçados por malvados
perseguidores. Até quando? O que achamos que estamos construindo para o futuro?
Em que isso tudo vai dar?
Ana Maria Machado é Escritora.
Originalmente publicado em O Globo em 18 de Fevereiro de 2017.
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