Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por H. James
Kutscka
Na vã tentativa de entender o
surrealismo das atuais atitudes do STF e do Congresso, me veio à memória um
sábado à tarde no início dos anos 70.
Costumeiramente, eu e um grupo de
amigos nos reuníamos para conversar, jogar poker e planejar o programa da
noite.
Nesse específico sábado, nos reunimos
na bela casa de arquitetura modernista de uma amiga, nas imediações da praça
Pan Americana em São Paulo, uma mulata linda que parecia haver saído de um
quadro de Di Cavalcanti, a modelo preferida de Clodovil Hernandez, que começava
a despontar para o sucesso na alta costura.
Era um dia típico de São Paulo, céu
cinza sublinhado por um chuvisco persistente, fino demais para ser considerado
chuva, mas que molhava até a alma.
As palavras: homofobia, racismo,
exclusão social e feminismo, já existiam é claro, mas não faziam parte do nosso
cardápio intelectual e não eram consumidas nem verbal nem socialmente.
Clodovil, que estava presente, para
passar o tempo, propôs um jogo que à diferença do poker, incluísse todos os
presentes, homens e mulheres.
Sentaríamos na sala formando um
circulo e em sentido horário, cada um dos participantes escreveria em um papel
que a seguir seria dobrado para que o seguinte não visse o que fora escrito, palavras
na seguinte ordem; um substantivo,
depois um adjetivo, a seguir um verbo e
essa ordem iria se repetindo até o
último participante.
O primeiro substantivo seria o sujeito
da frase ou história que deveria ser montada por um dos participantes do jogo,
que não tendo escrito palavra nenhuma, tentaria dar sentido às que teria em
mãos quando se completasse o círculo.
Por sua verve e indiscutível dom para
a ironia, Clô, - como gostava de ser chamado - foi escolhido para “costurar” as
palavras.
Foi uma tarde divertidíssima e
inesquecível, tanto que a estou relatando aqui tantas décadas depois.
Pode-se acusar o controverso estilista
de muitas coisas, mas jamais de ter sido um homem inculto.
Na época eu não sabia, mas esse jogo
foi o que na França, em 1925, dera início ao movimento intitulado Surrealismo,
inventado por André Breton e Georges Hugnet, o primeiro mais tarde fundador da
revista “Littérature” com Tristan Tzara criador do movimento Dadaísta.
Todos eles comunistas de carteirinha
visavam romper com todas as regras, desconstruir a realidade, inventar um mundo
novo onde não existisse nada pré-estabelecido.
O exercício intelectual ficou
conhecido como “Jogo do cadáver exótico”.
O primeiro “cadáver exótico” foi o que
dá título a este artigo.
Que não fazia nenhum sentido, mas
depois de algumas tentativas seguindo a mesma regra, começaram a surgir frases
instigadoras, que serviam como semente de obras mais extensas.
Aqui no Brasil o movimento foi
encampado por escritores e artistas da época e batizado de “Modernista”, dele
fizeram parte nomes como Ismael Nery, Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, Aníbal
Machado e Mario Pedrosa.
Na literatura, no cinema, e nas artes
plásticas, o surrealismo conseguiu deixar sua marca em algumas obras de valor,
outras apenas inquietantes e de gosto duvidoso como “O cão Andaluz” de Luis
Buñuel e Salvador Dalí que começa com
uma mulher tendo os olhos cortados por uma navalha; a mensagem era a de que,
apesar da dor, uma pessoa precisava
livrar-se dos olhos que lhes mostravam a
realidade modorrenta, para poder penetrar na surrealidade iluminada.
Para sorte da arte cinematográfica,
Buñuel logo abandonou Dalí a seus quadros surreais e nos brindou com
verdadeiras obras primas como “O anjo exterminador”, “Viridiana”, “Esse obscuro
objeto do desejo” e muitos outros filmes que marcaram época.
Bem, mas que tem a ver tudo isso com o
momento atual?
Explico: Em um país onde juristas discutem
sobre se ameaçar uma pessoa com macumba é crime e acabam decidindo que sim, o
é, e que se enquadra no artigo 158 do código penal brasileiro. Onde um deputado
de Pernambuco lança um projeto de lei para transformar blasfêmia em crime punível com até seis anos de prisão.
Onde o
Supremo Tribunal Federal decide legislar, e assim fazendo, considerar homofobia
crime de racismo, enquanto se locupleta com lagostas e vinhos premiados, quando
a maioria do povo não está conseguindo comer nem arroz com feijão.
Onde a maior autoridade do país almoça
em um restaurante de beira de estrada um “pf” com caminhoneiros.
Chego à triste conclusão de que; aqui, em “Terra Brasilis”, o surrealismo
é uma triste realidade e os ”cadáveres exóticos” bebem vinho no Supremo.
H. James Kutscka é Escritor e Publicitário.
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