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Por Maynard Marques de Santa Rosa
Lucius Quinctius Cincinnatus foi um patrício romano do século VI a.C.
cujo desprendimento político passou para a História como modelo civilizatório.
Convocado pelo Senado em duas oportunidades, ele pacificou um conflito interno,
eliminou uma ameaça externa e ainda legou um código harmonizador das relações
entre tribunos e plebeus. Após pacificada a República, renunciou duas vezes ao
cargo de ditador, e retornou à sua quinta.
Arquétipos são conteúdos mentais do inconsciente coletivo que agem como
instintos psicológicos de um povo, segundo a teoria de Jung.
Gilberto Freyre destacou o Exército como a mais genuína Instituição
nacional. Liderado por chefes escolhidos por mérito e composto de mestiços,
negros e brancos desde a epopeia de Guararapes, a Força tem evoluído no tempo,
regida por regras de honestidade, disciplina e organização que não foram
acompanhadas pelo conjunto da sociedade. O bombardeio ideológico das últimas
décadas relativizou os valores sociais e deturpou os costumes, criando um fosso
de critério entre a Instituição militar e a sociedade civil.
O idealismo juvenil das escolas militares, regado pela rotina cerimonial
de culto à pátria dos quarteis, perenizou-se na alma do soldado como sentimento
cívico arraigado.
A geração dos “tenentes” de 1922, inconformada com o coronelismo e a
corrupção que atrasavam o país, mobilizou-se no meio castrense e viabilizou a
Revolução de 1930, que projetou Getúlio Vargas. O Estado Novo urbanizou o país
e refundou a base econômica nacional, mas não reverteu o patrimonialismo
atávico.
Em vez disso, alimentou o corporativismo de grupos às custas da justiça e
da liberdade. A liderança resiliente de Getúlio ensejou-lhe o retorno, em 1951,
mas exacerbou a desconfiança da oposição com a sua ambição política e leniência
ao nepotismo.
A reintegração forçada de quadros politizados na década de 1930
traumatizou o Exército e afetou-lhe a produtividade. É notório que o exercício
da atividade política nos quarteis afeta a disciplina e compromete a
hierarquia.
O suicídio de Vargas suscitou um vácuo de poder no país. A ascensão de
Juscelino garantiu certo equilíbrio instável sob aval militar, até a reversão
conservadora das eleições de 1960. A renúncia de Jânio Quadros e a debilidade
do sucessor mergulharam o país no clima da Guerra Fria. O movimento comunista
aproveitou para impulsionar o seu projeto revolucionário. No final de 1963, a
sociedade assistiu, atônita, à paralisia crescente da atividade econômica pelas
greves políticas.
Sempre que impelido pelo instinto de defesa ante risco iminente, aflora o
arquétipo à consciência coletiva, em busca do arrimo das Forças Armadas, desde
os primórdios da abdicação do Imperador, em 1828.
Em março de 1964, a atenção da sociedade voltou-se para o Exército,
quando a crise caminhava para um cenário similar ao da Guerra Civil Espanhola.
Os generais revolucionários pertenciam à geração politizada dos tenentes de
1922 e 1924. A maioria da população acolheu a intervenção militar em
expectativa plácida e esperançosa. A prova é que não houve qualquer reação, nem
uma única baixa.
Implantada a nova ordem, tratou o Exército de banir toda atividade
política nos quarteis, para profissionalizar os quadros e melhorar a eficácia
operacional. Foi nesse ambiente que se formou a atual geração de chefes
militares. Se, por um lado, esmaeceu o ardor patriótico que estimulava
iniciativas políticas, por outro, a Instituição ganhou em disciplina e coesão,
e passou a merecer credibilidade interna e prestígio externo.
É razoável considerar que foi a longa duração do regime militar que o
desgastou. A intenção do governo Castello Branco de devolver o país à normalidade
democrática tão logo restabelecidas a lei e a ordem e reorganizadas as
instituições, foi frustrada pelo agravamento da ameaça subversiva e pela
pressão de certas corporações.
Após a redemocratização, voltou o Brasil a enfrentar o dilema ideológico,
com o retorno dos quadros políticos anistiados. A criação do Ministério da
Defesa, embora represente uma racionalização estratégica, ocorreu sob motivação
ideológica e revanchista. Na sua implantação, o governo FHC aplicou a doutrina
do “controle civil objetivo”, proposta pelo pensador globalista Samuel
Huntington e sintetizada no slogan: “A chave do cofre e a caneta em mãos civis”.
A intenção era centralizar na administração central as atividades de
inteligência, comunicação social e a gestão dos fundos institucionais das três
Forças. Felizmente, não aconteceu. No entanto, os fundos foram inseridos na LOA
(Lei Orçamentária Anual) e ficaram sujeitos a contingenciamento anual
implacável. Foi ainda introduzido o conceito de “série histórica”, que congelou
os orçamentos militares no teto de 1995 e restringiu as possibilidades de
reequipar e modernizar os sistemas operacionais.
Houve uma rejeição velada à presença de militares em atividade
governamental, entre 1990 e 2019, como produto politicamente correto do
paradigma da submissão à “sociedade civil organizada”.
Atualmente, a mão-de-obra militar tem sido empregada para compensar a
inexistência de quadros partidários do governo. Convém lembrar que, na reserva,
o militar é autônomo como pessoa física. Porém, quando na ativa, a farda
representa a Instituição perante o público. O envolvimento de militar da ativa
em atividade política compromete a imagem institucional.
A conjuntura mostra um perigoso
conflito nas relações entre os Poderes da República coincidente com a crise
global da saúde pública. Na hipótese de se chegar ao comprometimento da lei e
da ordem, resta o remédio do Art. 142 da Constituição Federal, e o acatamento
das Forças Armadas pela opinião pública será essencial na pacificação. Afinal,
é no inconsciente coletivo do povo que reside a fé no braço forte e a confiança
na mão amiga.
Maynard Marques Santa Rosa é General
de Exército na reserva. Foi Secretário de Assuntos Estratégicos no Governo Jair
Bolsonaro.
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